quinta-feira, 30 de julho de 2015

Casa Branca vai pedir ao Congresso que permita envio de detentos de Guantânamo para EUA

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“Guantânamo é uma vergonha não só para os EUA, mas para a humanidade”, já disse o ex-presidente uruguaio Mujica.
Prisão militar fica em base naval em Cuba; Washington anunciou retirada Ilha de lista de países que não tomam ações suficientes para combater tráfico de pessoas.
A Casa Branca enviará ao Congresso uma proposta que prevê que os 116 detentos encarcerados em Guantânamo sejam transferidos para os EUA, informou Lisa Monaco, assessora de Segurança Nacional do presidente Barack Obama.
O projeto, anunciado no domingo, dia 26/7, e divulgado pela agência Reuters, vem em meio aos esforços da administração Obama pelo fechamento da prisão militar norte-americana em Cuba e foi uma das principais bandeiras eleitorais do mandatário durante sua primeira campanha à presidência.
Segundo Monaco, Washington vai intensificar as transferências de 52 detidos liberados para recolocação em outros países. A ideia é que os demais presos sejam levados para prisões militares ou de segurança máxima dentro dos EUA para julgamento.
Muitos dos detidos em Guantânamo estão encarcerados há anos sem acusação formal e sofrem maus tratos e torturas. Para diversos grupos de direitos humanos internacionais e governos progressistas, as condições precárias da base militar controlada pelos EUA na Ilha liderada por Raul Castro é uma vergonha internacional.
Apesar disso, espera-se uma forte resistência dos republicanos no Congresso. A atual legislação em vigor no país proíbe a transferência de presos de Guantânamo para instalações norte-americanas. No ano passado, o Uruguai recebeu seis prisioneiros na condição de “refugiados”.
No domingo, dia 26/7, Havana exigiu mais uma vez a devolução de Guantânamo, bem como o fim do bloqueio econômico contra a Ilha, durante as comemorações do Dia da Rebeldia. No ato – que marcou os 62 anos do início da Revolução com ações da guerrilha liderada por Fidel Castro no Quartel Moncada – o governo cubano reforçou que essas demandas são fundamentais para a retomada integral das relações bilaterais com os norte-americanos.
EUA retiram Havana de lista de tráfico de pessoasO Departamento de Estado norte-americano retirou na segunda-feira, dia 27/7, Cuba de sua lista de países que não tomam ações suficientes para combater o tráfico de pessoas, reportou a Agência Efe.
Com a atualização do relatório anual do órgão, Havana não sofrerá mais com a imposição de sanções, como o congelamento da ajuda não humanitária e não comercial, que era submetida ao menos desde 2003.
Apesar da decisão, Washington manteve nessa lista países como Venezuela, Rússia, Irã, Síria e Coreia do Norte. A partir de agora, Cuba aparecerá na categoria “observação especial”, em que também constam nações como Bolívia, Costa Rica, Haiti, Jamaica e China.

Soberania alimentar: 5 passos para esfriar o planeta e alimentar sua população

Entre 44% e 57% de todas as emissões dos gases estufa provêm dos sistemas de alimentação globais. Entenda como isso funciona e as soluções para o problema.



Como a cadeia de produção global de alimentos contribui para o aquecimento global:

Desflorestamento: 15-18%

Antes que as plantações comecem, os tratores fazem seu trabalho. Pelo mundo todo, a agricultura industrial está se lançando sobre as savanas, as áreas úmidas e as florestas, lavrando uma enorme quantidade de terrenos. A FAO diz que a expansão da fronteira agrícola é responsável por volta de 70-90% do desflorestamento global, e a metade disto para a produção de alguns poucos commodities voltados à exportação. A parte agrícola do desflorestamento contribui com 15-18% das emissões globais de Gases do Efeito Estufa 

Agricultura: 11-15%

Se reconhece que a agricultura contribui com 11-15% de todos os gases estufa produzidos no mundo. A maior parte destas emissões resultam do uso de insumos industriais, como fertilizantes químicos e combustível para os tratores e maquinário agrícola, assim como o excesso de estrume gerado pela criação de gado.

Transporte: 5-6%

A cadeia produtiva da alimentação atua como uma agência de viagens global. Plantações para a alimentação de animais podem ser feitas na Argentina, para alimentarem frangos no Chile, que serão exportados para a China, onde serão processados e comidos em McDonalds dos EUA. Muita da nossa comida, produzida sob condições industriais em lugares distantes, viajam milhares de quilômetros antes de alcançarem nossos pratos. Nós podemos estimar que o transporte de comida está ligada a um quarto dos gases estufa produzidos pelo transporte mundial, ou 5-6% do total destas emissões.

Processamento e embalamento: 8-10%

O processamento é um passo altamente lucrativo da cadeia industrial do alimento. A transformação de alimentos em refeições prontas, salgadinhos e bebidas necessitam de uma enorme quantidade de energia, principalmente na forma de carbono. Assim como o embalamento e enlatamento desta comida.

Comercialização e refrigeração: 2-4%

A refrigeração é o sustentáculo das cadeias de supermercado e fast food. Onde quer que o sistema industrial de alimentos vá, a cadeia da refrigeração o acompanhará. Considerando que a refrigeração é responsável por 15% de todo consumo de eletricidade no mundo, e que o vazamento de químicos são uma grande fonte de gases estufa, podemos dizer com segurança que a refrigeração dos alimentos contribui para cerca de 1-2% de toda a emissão de gases estufa. O comércio varejista contribui para outros 1-2%.

Desperdício: 3-4%

O sistema industrial de alimentos descarta mais da metade de toda comida que ele produz, jogada fora na longa jornada entre as fazendas e os distribuidores, os processadores de alimentos e os varejistas e restaurantes. Boa parte do que é desperdiçado apodrece em montes de lixo e aterros sanitários, produzindo uma quantidade substantiva de gases estufa. Entre 3,5-4,5% das emissões globais destes gases vêm do lixo, e mais de 90% deles são produzidos por materiais originários do sistema de produção de comida.

Soberania alimentar: 5 passos para esfriar o planeta e alimentar sua população.

1- Tomar conta do solo.

A equação comida/clima está baseada na terra. A expansão da agricultura insustentável no século passado levou à destruição de cerca de 30-75% do material orgânico das terra aráveis, e 50% do material orgânico nas pastagens e pradarias. Esta perda massiva de matéria orgânica é responsável por entre 25% e 40% do atual excesso de CO2 na atmosfera terrestre. Mas a boa notícia é que este CO2 que mandamos à atmosfera pode ser devolvido ao solo apenas restaurando as práticas que pequenos agricultores desenvolveram por gerações. Se as políticas e incentivos corretos forem colocados em prática no mundo todo, a matéria orgânica do solo poderia ser restaurada a níveis pré-industriais dentro de 50 anos - que foi mais ou menos o tempo que a indústria levou para reduzi-la. Isto iria compensar entre 24% e 30% de todos os gases estufa atuais.

2- Agricultura natural, sem químicos.

O uso de químicos na agroindústria está sempre aumentando, enquanto os solos estão cada vez mais empobrecidos e as pestes estão se tornando imunes aos inseticidas e herbicidas. No entanto, pequenos agricultores pelo mundo ainda possuem o conhecimento e a diversidade de culturas e animais para plantar produtivamente sem o uso de químicos e diversificando os sistemas, integrando agricultura e criação de animais, incorporando tudo isso à vegetação nativa. Estas práticas aumentam a produtividade potencial da terra pois melhoram a fertilidade do solo e previnem a erosão. A cada ano mais matéria orgânica é produzida no solo, possibilitando a produção de mais e mais comida.

3- Acabar com a distância da comida e focar em alimentos frescos

A lógica corporativa que resulta nos envios de comida ao redor do mundo não faz nenhum sentido do ponto de vista ambiental ou de qualquer outra perspectiva importante. O comércio global de comida, da abertura de trechos de terras e florestas para a produção de commodities agrícolas até a comida congelada vendida nos supermercados: estes são os principais culpados do sistema na contribuição às emissões de gases estufa. Muitas das emissões do sistema poderiam ser eliminadas se a produção de comida fosse reorientada na direção dos mercados locais e dos alimentos frescos, e longe das carnes baratas e comidas processadas. Mas alcançar este patamar é provavelmente a luta mais dura, enquanto os governos e as corporações estão comprometidos com a expansão do comércio de alimentos.

4- Devolvam a terra aos agricultores e parem com as mega plantações.

Nos últimos 50 anos, 140 milhões de hectares - o tamanho de todas as terras de agricultura da Índia - foram tomados por quatro culturas que crescem predominantemente em grandes plantações: soja, dendê, canola e cana de açucar. A área global sob estes e outros commodities agrícolas - todos notáveis emissores de gases estufa - irá aumentar se as políticas públicas não mudarem. Hoje, pequenos agricultores estão espremidos em menos de um quarto das terras, mas produzem a maior parte da comida mundial - 80% de toda comida em países não-industrializados, segundo a FAO. Pequenos agricultores produzem estes alimentos de maneira muito mais eficiente do que as grandes plantações, e de uma maneira melhor para o planeta. Uma redistribuição mundial das terras aos pequenos agricultores, combinada com políticas que ajudem a reconstruir a fertilidade do solo e políticas que apoiem os mercados locais podem reduzir os gases estufa pela metade em poucas décadas.

5- Esqueça as soluções falsas e foque no que funciona

Há um crescente reconhecimento de que a comida é central nas mudanças climáticas. Os últimos relatórios do IPCC reconheceram que a comida e a agricultura são grandes contribuintes das emissões de gases estufa e que as mudanças climáticas impõem desafios gigantescos à nossa capacidade de alimentar uma população em crescimento. Ainda não houve nenhuma vontade política para desafiar o modelo dominante de distribuição e produção industrial de comida. Ao invés disso, os governos e corporações estão propondo inúmeras falsas soluções. Há uma proposta vazia do Climate Smart Agriculture, que é essencialmente apenas uma repaginação da Revolução Verde. Há tecnologias novas e arriscadas como culturas geneticamente modificadas, para resistirem a secas ou projetos de geoengenharia de larga escala. Há projetos de biocombustíveis, que estão levando à grilagem de terras no Sul. E há os mercados de carbono, que permitem que os piores agressores do meio ambiente não precisem cortar suas emissões apenas transformando florestas e a terra de camponeses e indígenas em áreas de conservação. Nenhuma destas “soluções” funcionarão, pois elas trabalham contra a única solução efetiva: uma mudança do sistema industrial globalizado de alimentos, governado pelas corporações, em direção de sistemas de alimentação locais que estejam nas mãos dos pequenos agricultores.

A estranha história do almirante Othon, que dedicou a vida à soberania do Brasil

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O vice-almirante Othon Pinheiro da Silva, mandado prender hoje [28/7] por Sérgio Moro, é o mais legítimo sucessor do também almirante Álvaro Alberto, que pôs em risco a própria carreira para desenvolver o conhecimento brasileiro sobre a energia nuclear e sua aplicação prática.
Othon – como fizera Alberto em 1953, quando conseguiu o apoio de Getulio Vargas para que o Brasil importasse secretamente centrífugas para enriquecimento de urânio, bloqueadas pelos EUA à última hora – também recorreu a expedientes bem pouco ortodoxos para superar os boicotes, as dificuldades e a incredulidade e fazer o Brasil dominar o ciclo de enriquecimento do urânio.
Obter para o nosso país o domínio do ciclo da energia nuclear é semelhante ao que fez Prometeu fazendo o fogo deixar de ser privilégio dos deuses do Olimpo.
Desta história, porém, saltam situações muito estranhas. Othon, hoje com 76 anos, já tocou projetos milionários e até bilionários: além do enriquecimento de combustível nuclear, o projeto brasileiro de submarino, construção de navios, obras de infraestrutura e muitos outros.
Tem um currículo técnico e operacional invejável, que inclui pós-graduações em engenharia mecânica e nuclear no famosíssimo Massachusetts Institute of Technology, nos EUA.
Enfrentou, ao longo da carreira, indizíveis pressões norte-americanas contra a absorção de tecnologia nuclear por países de sua zona de influência e resguardou segredos pelos quais, com facilidade, alguém que estivesse disposto a lesar seu país poderia ter vendido por uma pequena fortuna.
Agora, o MP diz que Othon teria recebido R$4,5 milhões como vantagens por um contrato aditivo de R$1,24 bilhão para a construção de Angra 3. Ou 0,36% do valor.
Folha publica que sua empresa de consultoria teria recebido, em sete anos, R$6,1 milhões. Isso dá R$870 mil por ano. De faturamento bruto, é menos do que está sendo proposto para a fixação de limite para a classificação como microempresa, segundo o Sebrae.
Muito menos do que alguém com sua história profissional poderia ganhar com consultoria empresarial no mercado. Bem menos do que muitos oficiais militares e policiais, depois de aposentados, obtém com empresas de segurança privada.
Ninguém, militar ou civil, está imune a deslizes e se os praticaram devem ser punidos. Como todos devem ter a presunção de que são inocentes e o almirante Othon sequer foi chamado a explicar os valores faturados por sua empresa de consultoria.
Esta história, construída a partir de um delator de fundilhos sujos que quer livrar sua pele dizendo o que lhe for mandado dizer não pode ser suficiente para enjaular um homem, muito menos um que tem uma extensa folha de serviços ao país.
As coisas na Operação Lava-jato são assim, obscuras e unilaterais, com um juiz mandando prender como alguns militares mandavam prender na ditadura.
É indispensável que o país ouça, como o Dr. Moro não se interessou em ouvir, a versão do almirante Othon sobre os fatos – se é que existiram – que a Polícia Federal e o MP dizem ter ocorrido.
E é estranho que se tenha escolhido justamente uma área tão sensível como a da energia nuclear para que o Dr. Moro detonasse suas bombas de fragmentação, que ferem e destroem honra e empresas nas áreas mais estratégicas para este pobre Brasil.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

A Globo, a CBF e os direitos de transmissão esportiva na tevê

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Ao conquistar altos índices de audiência, o futebol tornou-se um dos produtos mais disputados pelas 
No Brasil, clubes e federações dependem cada vez mais das emissoras para sobreviver. Direitos de transmissão e direitos de imagem – pagos pelas tevês – superam qualquer tipo de receita. Essa dependência, bem como os recentes escândalos envolvendo o mundo do futebol, é objeto de debate no Ver TV, que recebe o repórter Luiz Carlos Azenha, da Rede Record, um dos autores do livro O lado sujo do futebol; o jornalista Altamiro Borges, presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; o professor Marcos Vinícius Cardoso, do Curso de Pós-Graduação em Gestão Esportiva da Universidade 9 de Julho.
O programa exibe entrevistas com o professor de Direito Esportivo Pedro Trengrouse, da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro; com o professor Anderson dos Santos, da Universidade Federal de Alagoas e autor da dissertação A consolidação de um monopólio de decisões – a Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol; com o diretor da TV Universitária de Pernambuco, Luiz Lourenço; e com o vice-governador de Pernambuco, Raul Henry, autor de um projeto de lei que prevê uma distribuição mais justa das cotas de transmissão do futebol entre os clubes.

O mito da estabilidade no governo FHC

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Os números desagradáveis aqui expostos contam uma história bem diferente da inventada “estabilidade monetária e financeira”.
Efeméride convocada no Senado na semana passada comemorou o aniversário do Plano Real. Um importante plano que debelou a hiperinflação, mas que abriu também caminho para implantação plena às chamadas políticas neoliberais de abertura e desregulamentação. Entretanto, o Plano não trouxe estabilidade monetária e financeira para o país, como muitas vezes se divulga. O Plano trouxe, juntamente com as políticas neoliberais, elevados custos relativos à estagnação econômica, bem como os relativos ao endividamento público.
Na homenagem do Senado os oradores tentaram sucessivamente vincular o sucesso do Real ao próprio governo FHC e suas políticas neoliberais. Nessa tentativa, os oito anos de FHC, no pós-Real foi “reinventado” como um período de estabilidade monetária e financeira para o país.
Vejamos como o exame das variáveis de taxa de inflação, taxa cambial e taxa de juros mostram como os governos FHC não trouxeram nenhuma estabilidade à economia, nem mesmo a monetária.
Restabelecendo a história: a continuidade da instabilidade monetária pós-RealComecemos pela suposta estabilidade monetária. O que se alega é que o Plano Real, além de eliminar a hiperinflação, criou uma moeda de valor estável, o que já se revelou nos oito anos dos governos FHC.
Primeiro vejamos como o Plano Real funcionou. A ideia do Plano na verdade nada teve de original: depois de alinhar os preços com a URV (unidade referencial de valor, essa sim uma boa ideia), apenas atrelou a nova moeda, o real, ao dólar, praticamente ao par (um por um). Com isso houve uma súbita valorização da nova moeda, tornando os bens importados ainda mais baratos.
O custo da manobra, no entanto, foi a imediata supervalorização da moeda, acompanhada por uma elevação das taxa de juros a níveis estratosféricos (na virada de 1994/95 chegou a 60% ao ano) para atrair dólares.
No entanto, a taxa de inflação pós-real se manteve longe da estabilidade. Em 1995, a taxa foi de 22%, e continuou variando 9% ao ano, em média, até 2002. No primeiro governo, a inflação já tinha acumulado 43%. Somando os dois governos, o acumulado chegou a 100%. E pior, ao acabar o período, em 2002, a taxa tinha voltado a uma inflação de dois dígitos, marcando 12,5% e subindo. Só para comparar, o acumulado de oito anos de Lula foi de 56% e os quatro de Dilma chegaram a 27%.
Essas elevadas taxas de inflação prejudicaram a estabilidade cambial, desafiando até a incrível taxa de juros real adotada, que terminou gerando apenas riqueza financeira para os mais riscos e reduzindo o investimento produtivo.
Restabelecendo a história: instabilidade e colapso cambialAnalisemos agora o comportamento da taxa de câmbio. Ela afeta ao mesmo tempo a moeda, o crédito e o nível de atividade econômica. E, nas economias periféricas, é uma variável que é capaz de levar um país à bancarrota.
Com o real atrelado ao dólar, a taxa cambial iniciou 1995 em R$0,84 o dólar, uma taxa muito valorizada, como já vimos, para deter a hiperinflação.
Mas junto com os preços das importações, também caiu a produção interna e abriu-se um déficit crescente nas contas externas. Essas contradições do Plano Real impediram a manutenção estável do câmbio, que foi sendo desvalorizado continuamente até já ter perdido 43% de seu valor até 1998. Como a taxa inflacionária manteve-se maior que a desvalorização do câmbio, o governo acabou por não conseguir controlar nem o câmbio, nem o déficit externo e nem o fluxo especulativo de dólares atraído pelos juros estratosféricos. E sobreveio a debacle.
Em janeiro de 1999, o Brasil quebrou pela primeira vez na mão de FHC. As reservas em dólares se evaporaram e o real se desvalorizou, com sua taxa chegando até R$4,00 por dólar.
Sumiram os dólares, ficamos sem crédito externo para manter as importações, mas as dívidas cresceram. O país só saiu da bancarrota graças a empréstimos do governo norte-americano e outros apoiados pelo FMI. A maxidesvalorização em 1999 acabou por atingir 40%. O governo brasileiro e sua moeda não tinham mais confiança externa. Muito longe já estávamos de qualquer estabilidade monetária e financeira.
Porém, um novo desastre já estava a caminho. A economia estagnada, uma moeda nacional com valor instável, sempre com tendência de queda, e baixo nível de reservas tornaram o Brasil outra vez alvo fácil da especulação cambial. A partir de maio de 2002, sobreveio novo ataque especulativo contra o real. E o Brasil quebrou pela segunda vez na mão de FHC.
De novo, nossa moeda se desvalorizou fortemente, chegando a mais de R$3,00 o dólar. Ficamos mais uma vez sem dólares e sem crédito externo. Outra vez o governo FHC e o Banco Central perderam o controle monetário e cambial. A salvação veio com o FMI: outro financiamento de emergência foi arranjado, muito maior que o de 1999. Mas dessa vez ele veio o junto a exigência de monitoramento trimestral, tendo em vista o descrédito da economia e do governo.
A incrível taxa de juros estratosféricaPor fim temos a variável da taxa de juros. Foi exatamente nos primeiros anos do Plano Real que nossa economia se consolidou como a campeã mundial de taxas de juros reais elevadas e perenes. Passamos a ser a economia bizarramente mais juros-dependente do mundo. Uma rara anomalia que bem longe está de qualquer definição de estabilidade financeira. A parte mais pesada da herança deixada ao Brasil pelas políticas neoliberais de FHC.
A taxa Selic, que iniciou 1995 a 60% ao ano, só caiu abaixo de 40% em 1998. E abaixo de 30% ao ano em meados de 1999. Em apenas dois anos os credores da dívida pública federal dobraram seu investimento, e em quatro anos o quintuplicaram. O total da dívida pública líquida se multiplicou durante oito anos, saindo de apenas 37% do PIB, em 1994, para mais 60% em 2002. Nunca um país viu sua dívida pública subir dessa forma em tempos de paz.
A conjunção de elevadas taxas reais de juros, instabilidade econômica e vasta fraude bancária detonou, em 1997, a maior crise bancária do século 20. Neste ano, três dos dez maiores bancos do país quebraram (Banco Nacional, Mercantil de Minas e Bamerindus). O que desencadeou também o maior resgate público de investimentos privados depositados já visto no Brasil.
Uma realidade bem infelizO país entregue ao governo Lula, em 2003, foi um país em situação de instabilidade cambial crônica, inflação em alta, sem crédito externo e sem reservas próprias de divisas.
Os números desagradáveis aqui expostos contam uma história bem diferente da inventada “estabilidade monetária e financeira” trazida pelo Plano Real e vivida durante os governos FHC. Esses números são facilmente acessíveis em sites como Ipeadata, Banco Central e IBGE. Não são nem nunca foram secretos. Qualquer um pode obtê-los.
Transformar essa verdade de oito anos de instabilidade monetária, colapsos cambiais e bancarrotas nacionais em uma rósea paisagem de estabilidade parece ir bem mais longe do que uma reinvenção da história, beira mais a simples fraude.

Quando as crianças iam para a cadeia no Brasil

Bernardino, preso aos 12 anos e seviciado, motivou mudança no código penal

Em 12 de outubro de 1927, no Palácio do Catete, o presidente Washington Luiz assinava uma lei que ficaria conhecida como Código de Menores. Hoje, passados quase 90 anos, a canetada do último presidente da República do Café com Leite é alvo das mais exaltadas discussões no governo, no Congresso e na sociedade.

Foi o Código de Menores que estabeleceu que o jovem é penalmente inimputável até os 17 anos e que somente a partir dos 18 responde por seus crimes e pode ser condenado à prisão. O que agora está em debate no país é a redução da maioridade penal para 16 anos.

O código de 1927 foi a primeira lei do Brasil dedicada à proteção da infância e da adolescência. Ele foi anulado na década de 70, mas seu artigo que prevê que os menores de 18 anos não podem ser processados criminalmente resistiu à mudança dos tempos.

É justamente a mesma idade de corte que hoje consta da Constituição e do Código Penal, além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — uma espécie de filhote do Código de Menores que nasceu em 1990 e completará 25 anos na segunda-feira (13).

A pioneira lei, que foi construída com a colaboração do Senado, marcou uma inflexão no país. Até então, a Justiça era inclemente com os pequenos infratores. Pelo Código Penal de 1890, criado após a queda do Império, crianças podiam ser levadas aos tribunais a partir dos 9 anos da mesma forma que os criminosos adultos.

Notícias criminais protagonizadas por crianças e adolescentes eram corriqueiras na imprensa. Em julho de 1915, o jornal carioca A Noite noticiou: “O juiz da 4ª Vara Criminal condenou a um ano e sete meses de prisão um pivete de 12 anos de idade que penetrou na casa número 103 da Rua Barão de Ubá, às 13h, e da lá furtou dinheiro e objeto no valor de 400$000”.

A mão policial também era pesada. Até o surgimento do Código de Menores, os pequenos delinquentes recebiam o mesmo tratamento dispensado a bandidos, capoeiras, vadios e mendigos. Uma vez capturados, todos eram atirados indiscriminadamente na cadeia.

Em março de 1926, o Jornal do Brasil revelou a estarrecedora história do menino Bernardino, de 12 anos, que ganhava a vida nas ruas do Rio como engraxate. Ele foi preso por ter atirado tinta num cliente que se recusara a pagar pelo polimento das botinas. Nas quatro semanas que passou trancafiado numa cela com 20 adultos, Bernardino sofreu todo tipo de violência. Os repórteres do jornal encontraram o garoto na Santa Casa “em lastimável estado” e “no meio da mais viva indignação dos seus médicos”.

Reformatórios

Em 1922, uma reforma do Código Penal elevou a maioridade de 9 para 14 anos. Com o Código de Menores de 1927, chegou-se aos 18 e a prisão de crianças e adolescentes ficou proibida. Em seu lugar, teriam de ser aplicadas medidas socioeducativas, como se chamam hoje.

No caso dos delinquentes com idade entre 14 e 17 anos, o destino seria uma escola de reforma (ou reformatório), onde receberiam educação e aprenderiam um trabalho. Os menores de 14 anos que não tivessem família seriam mandados para a escola de preservação, uma versão abrandada do reformatório. Os mais novos com família poderiam voltar para casa, desde que os pais prometessem às autoridades não permitir que os filhos reincidissem.

Extenso e minucioso, o código se dividia em mais de 200 artigos, que iam além da punição dos pequenos infratores. Normatizavam desde a repressão do trabalho infantil e dos castigos físicos exagerados até a perda do pátrio poder e a criação de tribunais dedicados exclusivamente aos menores de 18 anos.

No Brasil da virada do século 19 para o 20, uma parcela considerável da população vivia na miséria. Com o fim da escravidão, em 1888, os negros e suas famílias se viram abandonados de uma hora para a outra, elevando as estatísticas da pobreza. A ainda tímida industrialização atraía gente do campo, mas não conseguia absorver toda a mão de obra disponível. As cidades inchavam,e o desemprego e a criminalidade disparavam.


Às crianças e aos adolescentes restavam dois caminhos. Ou trabalhavam, submetidos a serviços pesados ou perigosos, jornadas exaustivas e pagamentos irrisórios. Trabalhadores imberbes eram vistos operando máquinas nas indústrias, vendendo bilhetes de loteria nas ruas e participando das colheitas nas fazendas.

Ou então perambulavam pelas ruas das cidades grandes, como Rio e SãoPaulo, agrupados em “maltas”, como se dizia, cometendo roubos, aplicando golpes, pedindo esmolas ou simplesmente vadiando. Naquela altura, as escolas públicas eram raras e estavam reservadas para os filhos das classes abastadas.

A Gazeta de Notícias, numa reportagem de fevereiro de 1929, explicou o problema das ruas para as crianças: “Aí aprendem coisas que não deveriam ou não precisariam saber: encontram más companhias que os desencaminham, adquirem vícios e maus costumes, deslizam para a vadiagem, a mendicidade, a libidinagem, a gatunagem e outras formas de delinquência”.

Documentos preservados no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam que os senadores foram protagonistas no longo processo que culminou na criação do Código de Menores de 1927.

Um dos pioneiros da causa infantil foi o senador Lopes Trovão (DF). Ainda no final do século 19, ele subiu à tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio (que tinha o status de Distrito Federal), para dizer que era inaceitável a apatia do poder público diante das crianças abandonadas e delinquentes.

— Ao Estado se impõe lançar olhos protetores, empregar cuidados corretivos para a salvação dos pobres menores que vagueiam a granel, provando nas palavras que proferem e nos atos que praticam não ter família. Se a têm, esta não lhes edifica o coração com os princípios e os exemplos da moral — discursou ele em setembro de 1896.

Patriarcalismo

Para o senador, o Estado precisava ter poder para retirar de casa e internar em escolas especiais as crianças que não recebessem dos pais a devida educação moral. Segundo ele, vários países avançados já subtraíam o pátrio poder das famílias negligentes, como os Estados Unidos, a França e a Inglaterra.

Lopes Trovão acreditava que os cidadãos de sua geração já estavam corrompidos e não seriam capazes de tirar o Brasil do atraso social e conduzi-lo à civilidade. Para ele, a solução seria apostar todas as fichas nas crianças.

— Temos uma pátria a reconstituir, uma nação a formar, um povo a fazer. Para empreender essa tarefa, que elemento mais dúctil e moldável a trabalhar do que a infância? São chegados os tempos de trabalharmos na infância a célula de uma mocidade melhor, a gênese de uma humanidade menos imperfeita. Preparemos na criança o futuro cidadão capaz de efetuar a grandeza da pátria dentro da verdade do regime republicano.

Muito embora o senador Lopes Trovão já fosse uma figura respeitada por ter militado na linha de frente dos movimentos abolicionista e republicano, o projeto de Código de Menores que ele apresentou em 1902 terminou engavetado.

O senador Alcindo Guanabara (DF) foi outro expoente na defesa da “infância desvalida”. Em agosto de 1917, ele fez um enfático pronunciamento em que buscou convencer os colegas da necessidade urgente de um Código de Menores:

— São milhares de indivíduos que não recebem senão o mal e que não podem produzir senão o mal. Basta de hesitações! Precisamos salvar a infância abandonada e preservar ou regenerar a adolescência, que é delinquente por culpa da sociedade, para transformar essas vítimas do vício e do crime em elementos úteis à sociedade, em cidadãos prestantes, capazes de servi-la com o seu trabalho e de defendê-la com a sua vida.

O projeto que o senador redigiu em 1917 também acabou sendo arquivado. Em 1906, como deputado federal, Alcindo Guanabara já havia apresentado uma proposta semelhante, que tampouco avançou. Outra tentativa de criação do Código de Menores foi feita em 1912, pelo deputado João Chaves (PA).

Desde o discurso de Lopes Trovão, passaram-se mais de 30 anos até que o Código de Menores fosse aprovado. Foram vários os motivos da demora. Um deles, segundo estudiosos do tema, foi a 1ª Guerra Mundial (1914–1918), que reduziu a mera frivolidade qualquer discussão em torno da infância. Outro entrave foi o patriarcalismo.

— Os senadores e deputados faziam parte daquela sociedade patriarcal e não queriam perder o poder absoluto que tinham sobre suas famílias até então. O Código de Menores mudava essa realidade, permitindo que o Estado interviesse nas relações familiares e até tomasse o pátrio poder — explica a historiadora Sônia Camara, autora do livro Sob a Guarda da República (Quartet Editora), que trata das crianças da década de 1920.

O historiador Eduardo Silveira Netto Nunes, estudioso da evolução das leis da infância, vê um terceiro motivo. De acordo com ele, uma parcela dos parlamentares tinha aversão às propostas de Código de Menores porque a construção dos reformatórios, escolas e tribunais previstos na nova lei exigiriam o aumento dos impostos.

— Até então, o governo estava ausente das políticas sociais. Sua atuação se resumia à repressão policial. O Código de Menores apareceu como o prenúncio do que viria a partir dos anos 30, com Getúlio Vargas, que transformaria o governo no grande administrador da sociedade e colocaria as políticas sociais como prioridade. Vargas, por exemplo, trouxe uma série de direitos trabalhistas.

Na entrada da década de 20, os obstáculos começaram a cair. No governo Epitácio Pessoa, o advogado e ex-deputado José Cândido Mello Mattos foi encarregado de reformular o projeto do senador Alcindo Guanabara e passou a conduzir o movimento. Por influência dele, o Congresso aprovou uma série de leis relativas à infância que abririam caminho para a criação do Código de Menores. Na época, a lei ficou conhecida como Código Mello Mattos.

Dia da Criança

A data da assinatura do Código de Menores, em 12 de outubro de 1927, havia sido escolhida pelo presidente Washington Luiz a dedo, para coincidir com os festejos do Dia da Criança, criado por decreto pouco antes por seu antecessor, Artur Bernardes.

A nova lei, em resumo, determinava ao governo, à sociedade e à família que cuidassem bem dos menores de 18 anos.

Um dos artigos proibiu a chamada roda dos expostos, a medieval roleta embutida na parede externa de instituições de caridade que permitiam à mulher — solteira, quase sempre — abandonar anonimamente o filho recém-nascido. Com o código, a mãe teria que primeiro providenciar a certidão de nascimento do bebê para depois poder entregá-lo aos funcionários do orfanato, onde se lavraria um registro, que poderia ser secreto se fosse esse o desejo da mulher.

O trabalho infantil era fartamente explorado. Ainda que pouco produtiva, era uma mão de obra abundante e barata. A partir de 1927, as crianças de até 11 anos não puderam mais trabalhar. A atividade dos adolescentes entre 12 e 17 anos ficou autorizada, porém com uma série de restrições. Eles, por exemplo, não poderiam trabalhar durante a noite nem ser admitidos em locais perigosos, como minas e pedreiras.


De acordo com a historiadora Maria Luiza Marcilio, autora do livro História Social da Criança Abandonada (Editora Hucitec), o Código de Menores foi revolucionário por pela primeira vez obrigar o Estado a cuidar dos abandonados e reabilitar os delinquentes. Ela, porém, faz uma ressalva:

— Como sempre acontece no Brasil, há uma distância muito grande entre a lei e a prática. O Código de Menores trouxe avanços, mas não conseguiu garantir que as crianças sob a tutela do Estado fossem efetivamente tratadas com dignidade, protegidas, recuperadas.

O sucessor da lei de 1927 foi o Código de Menores de 1979, criado pela ditadura militar. Depois, em 1990, veio o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Os dois primeiros códigos, grosso modo, dirigiam-se apenas aos marginais. O ECA, por sua vez, vale para todas as crianças e adolescentes, independentemente da classe social. Antes, o foco das leis estava nas punições. Agora, nos direitos. Nos velhos códigos, o infrator capturado era punido automaticamente. Hoje, ele tem direito a ampla defesa e, para isso, conta com o trabalho dos defensores públicos.

O termo “menor”, que se popularizou na época do código de 1927, agora é abominado pelo meio jurídico. O ECA, em seus mais de 250 artigos, não o utiliza nenhuma vez. No lugar de “menor”, adota a expressão “criança ou adolescente”. Explica o historiador Vinicius Bandera, autor de um estudo sobre a construção do primeiro código:

— “Menor” é um termo pejorativo, estigmatizante, que indica anormalidade e marginalidade. “Criança ou adolescente” é condizente com os novos tempos. Remete à ideia de um cidadão que está em desenvolvimento e merece cuidados especiais.

Geraldo Alckmin provoca diarreia em São Paulo

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Na semana passada, o jornal espanhol El País publicou uma reportagem bombástica que até poderia ter sido produzida no Brasil – se a mídia nativa não fosse tão chapa-branca e tucana.
Assinada pela jornalista Maria Martín, ela mostra que no momento mais dramático da falta de água em São Paulo houve uma explosão dos casos de diarreia no Estado mais rico da federação.
Nos últimos dias, a imprensa venal deu destaque para as declarações ufanistas do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que afirmou, na maior caradura, que “não vai haver rodízio de água” – como se isso já não fosse uma dura realidade em várias cidades paulistas.
No esforço para limpar a imagem do grão-tucano, a coluna Painel da Folha chegou a publicar que “Geraldo Alckmin pretende transformar a crise hídrica paulista em um de seus principais ativos para se cacifar como candidato do PSDB ao Planalto em 2018.
Ele disse a aliados que, se conseguir chegar ao fim do período de seca sem um racionamento, a gestão da crise – vista como ponto fraco na disputa pela reeleição – pode ser usada como case de sucesso. Para o tucano, apresentar-se como “o governador que resolveu o problema” pode lhe valer pontos, principalmente no Nordeste”.
Diante de tamanha manipulação da opinião pública, vale conferir a reportagem do jornal espanhol El País – que também é de direita, mas que ainda não depende das milionárias verbas de publicidade e das descaradas compras de assinaturas do Palácio dos Bandeirantes:
Os casos de diarreia aguda tiveram aumento importante no Estado de São Paulo em 2014, associado à crise hídrica. A avaliação é do próprio Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE), órgão da Secretaria Estadual de Saúde, ligado ao governo Geraldo Alckmin (PSDB). O centro qualificou 2014 como um ano “hiper-epidêmico”, após uma análise detalhada, embora preliminar, das notificações de surtos da doença. O órgão associa o evidente aumento de casos comunicados – quase 35 mil em algumas semanas de fevereiro, março e setembro – aos problemas de abastecimento de água que ainda afetam toda a região metropolitana e várias cidades do interior. “A crise hídrica escancara problemas que não são novos em relação à água e ao saneamento em São Paulo e no Brasil”, considera o estudo.
Na série histórica dos seis anos anteriores à crise, 2008 a 2013, a média do Estado mostra que o número de casos se situava entre 15 mil e 20 mil, nunca superando os 25 mil. Nessa série, setembro aparece sempre como um mês crítico e registra o maior número de notificações anuais, superando um pouco mais de 20 mil. A diminuição da pressão, a intermitência do abastecimento, o racionamento, o consumo do volume morto das represas, e o uso da água de poços e caminhões-pipa, cuja qualidade não é sempre fiscalizada conforme a lei, são as principais causas que podem comprometer a qualidade da água e promover o surgimento de surtos (ocorrência de dois ou mais casos) de diarreia e outras doenças transmissíveis pela água, conforme aponta a pesquisa do CVE.
O estudo identifica cenários relevantes como o da capital e os de outros sete municípios do interior – Campinas (norte), Tambaú (noroeste), Mogi das Cruzes (região leste), Araraquara (centro), Piracicaba (noroeste), São José do Rio Preto (noroeste) e São João da Boa Vista (centro-leste) – observou-se o aumento de atendimentos com concentrações muito mais altas em determinados momentos do ano, que coincidem com os períodos mais críticos da crise, como o final da estação da seca.
No caso de Tambaú, município de 23 mil habitantes, os casos de diarreia dispararam de menos de uma dezena até mais de 90 a partir de 16 de agosto de 2014, quatro dias antes de a cidade decretar estado de calamidade por falta de água. O número de casos não voltou à normalidade até novembro, embora até fevereiro deste ano a média de notificações continuou superior à verificada no mesmo período de 2014.
Os períodos de janeiro a abril e de agosto a setembro do ano passado foram críticos no conjunto do Estado. A análise é feita com base nas chamadas semanas epidemiológicas, que começam no domingo e terminam no sábado seguinte. No período de 9 a 15 de fevereiro foram registrados quase 35 mil casos no Estado, assim como na semana entre 7 e 13 de setembro, onde o número foi similar. Durante o resto das semanas, o índice de notificações não caiu abaixo de 15 mil. O número de casos, entretanto, pode ser ainda maior. Em outro estudo do tipo de 2005, a médica e sanitarista Maria Bernardete de Paula Eduardo, que ocupava a diretoria da Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar do CVE desde 1999, demonstra que apenas 40% das pessoas que têm a doença procuram os serviços de saúde, que passaram a notificar os atendimentos por diarreia em 2000.
As primeiras conclusões deste levantamento foram apresentadas em maio pela atual diretora da Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar do centro, Eliane Suzuki, com dados coletados e analisados pelo departamento público. Na intervenção, feita em um seminário sobre segurança da água para consumo humano, ocorrido na Faculdade de Saúde Pública da USP, Suzuki afirmou: “Se vê claramente que o número [de casos de 2104] é maior. Isto evidencia que com a falta de água e as consequências que isso traz, 2014 foi um ano hiper-epidêmico”. A apresentação está disponível, a partir do minuto 79, no site da USP.
El País mostrou em reportagem de maio deste ano que a contaminação do encanamento de água potável, com terra ou esgoto, pode deixar uma rua inteira doente. Os moradores do Jardim Conceição, um bairro pobre de Osasco, relataram que em fevereiro deste ano, famílias inteiras apresentaram sintomas como vômitos e diarreia. “A água da rede de esgoto se misturou com a das tubulações”, afirmou Nazaré, de 46 anos, uma das afetadas. “A água que saía da torneira tinha cheiro de merda, e a rua inteira ficou doente”. A Sabesp afirmou na época que o que poluiu a água foi terra e que a avaria foi consertada em três dias. “Nós não confiamos mais nessa água, muito menos para dar às crianças”, dizia a jovem Janaína Dias. O estrago, disse, os deixou 15 dias sem água.
No período de 9 a 15 de fevereiro foram registrados quase 35 mil casos no Estado, assim como na semana entre 7 e 13 de setembro, onde o número foi similar.
Outros casos foram revelados pela imprensa, antes das autoridades agirem, durante o ano passado. Em agosto de 2014, o município de Brodowski, a 339 quilômetros de São Paulo, registrou 195 casos de pessoas com vômitos e diarreia em 15 dias, segundo informou aFolha de S.Paulo. O Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Brodowski (Saaeb) não descartou a possibilidade de as pessoas terem sido contaminadas pela água, após o abastecimento ser relegado aos caminhões-pipa. Também em agosto, moradores de Redenção da Serra, município atendido pela Sabesp a 163 quilômetros da capital, sofreram nos seus estômagos a seca da sua represa e um problema na estação de tratamento de água, segundo noticiou o portal G1.
Já em março deste ano, Moradores do Jardim Turquesa, no M’Boi Mirim (zona sul de São Paulo) receberam água com cheiro de esgoto e, segundo o diário Agora, ao menos 57 pessoas passaram mal com diarreia, vômito, dor de cabeça ou febre, após contato com a água malcheirosa e de cor amarronzada. O jornal levou o líquido a um laboratório, que constatou a presença de coliformes fecais (presentes nas fezes), o que torna a água imprópria para consumo, mesmo após fervura. A Sabesp negou e afirmou que a água atendia os padrões sem apresentar risco sanitário.
Os moradores do Jardim Conceição, um bairro pobre de Osasco, relataram que em fevereiro deste ano, famílias inteiras apresentaram sintomas como vômitos e diarreia.
A Sabesp, que foi consultada pela incidência de doenças durante a crise hídrica nos municípios onde ela opera (São Paulo, Mogi das Cruzes e São João de Boa Vista), afirmou por meio da assessoria da imprensa que “a água distribuída à população está dentro dos parâmetros exigidos pela Portaria 2.914/2011, do Ministério da Saúde”. A empresa disse que os resultados das mais de 62 mil análises mensais que realiza são encaminhados para as vigilâncias sanitárias locais, conforme a lei.
A Secretaria de Saúde afirmou que os dados do estudo foram utilizados para debater a questão das doenças transmitidas por água e alimentos, “além de ajudarem na elaboração do plano de contingência em relação ao cenário de estiagem e crise hídrica”. Questionada sobre por que a população não foi alertada sobre os riscos de doenças transmitidas pela água em um cenário de crise hídrica, a pasta afirmou que “cabe a cada município desencadear suas ações, de forma descentralizada, e alertar a população”. A assessoria de imprensa negou entrevista com a responsável do departamento que fez o estudo e avaliou depois que a interpretação da reportagem sobre o mesmo, apesar de checada com diversas fontes, “é fruto de ansiedade porque o estudo ainda é meramente preliminar”.
O rastro da Hepatite AAlém das diarreias e vômitos, a água contaminada também pode causar outras doenças mais graves, como a Hepatite A, uma inflação do fígado causada por um vírus transmitido pela ingestão de água ou alimentos contaminados com matéria fecal.
Em Carapicuíba, ao menos cinco pessoas tiveram Hepatite A nos últimos 15 dias em apenas duas ruas de um mesmo bairro. Eles começaram a sentir uma forte dor abdominal, fadiga, falta de apetite e perceberam que um tom amarelo tingiu seus olhos e pele. Luan, de sete anos, Rosângela, a mãe, e o jovem Willkner Eduardo Gama, de 21 anos, foram três das vítimas. “Fiz tratamento com soro e chá de picão [uma erva medicinal] e já estou bem, mas o médico me falou que foi por culpa da água que tinha bebido e não voltei a tomar da torneira. Aquele dia que eu fiquei doente, a água estava com uma cor amarela”, conta Willkner.
A doença, no entanto, permaneceu estável nos últimos anos em São Paulo e tende a desaparecer graças a uma vacina específica aplicada nas crianças, conforme informações do CVE. No ano passado, foram registrados 16 surtos, com até 60 casos no mês de setembro. Um surto é considerado a partir de dois casos na mesma fonte, no mesmo lugar e no mesmo período de tempo.