Um dossiê que será investigado pelo Ministério Público de Minas Gerais coloca sob suspeita as relações entre a Fundação Ezequiel Dias (Funed) e o laboratório paulista Blanver Farmoquímica Ltda. No documento, ao qual O TEMPO teve acesso, um ex-funcionário que pediu anonimato acusa a Funed de favorecer a empresa Blanver em contratos de industrialização de medicamentos que ultrapassam a cifra dos R$ 30 milhões.
A denúncia aponta indícios de sobrepreço, direcionamento de licitações e mesmo ausência de pregão na terceirização de produção de remédios para o combate à Aids, os chamados antirretrovirais, fornecidos para o Sistema Único de Saúde (SUS).
O caso será investigado pela promotora de Justiça de Defesa da Saúde Josely Ramos Pontes. Ela disse à reportagem que essa não é a primeira investigação que envolve Blanver e Funed. "Temos pelo menos seis volumes de documentos. Pela primeira vez, no entanto, estamos vendo dispensa de licitação, o que é um indício forte de irregularidades", disse a promotora.
A primeira suposta irregularidade teria ocorrido, conforme o dossiê, em julho de 2006, quando a fundação do governo mineiro assinou termo aditivo em contrato já existente com a Blanver solicitando a produção de 6 milhões de comprimidos de lamivudina+zidovudina 150mg+300mg.
O medicamento, que integra o coquetel antiAids distribuído pelo SUS, não fazia parte dos lotes licitados no pregão vencido pela Blanver em março do mesmo ano. O preço dos comprimidos: R$ 401,4 mil.
Termos aditivos são legais desde que não se alterem os objetos - no caso, houve a inclusão de um novo medicamento que não fazia parte dos lotes licitados. O correto seria fazer uma nova licitação, diz o ex-funcionário. Ele denuncia também que a Blanver não tinha experiência na fabricação de antirretrovirais. E que, dois meses depois, a diretoria industrial da Funed emitiu atestado de capacidade técnica de que a Blanver atendia plenamente as exigências para a produção da lamivudina + zidovudina 150/300mg.
Mas, em janeiro de 2007, a procuradoria da Funed teve que notificar a empresa por atraso na entrega dos antirretrovirais. O laboratório alegou "problemas de produção e garantiu ter adquirido novos equipamentos para resolver os atrasos, além de realizar novos procedimentos operacionais de qualidade".
Os contratos que supostamente teriam beneficiado a Blanver foram fechados pelo então diretor industrial da Funed, Dalmo Magno de Carvalho.
Em março de 2007, Whocely Victor de Castro assumiu o cargo no lugar de Carvalho e decidiu licitar o serviço de industrialização da lamivudina + zidovudina 150/300mg até então entregue à Blanver. A Pharlab Indústria Farmacêutica foi a vencedora, com o preço de R$ 149,3 mil para a produção de 6 milhões de comprimidos.
No termo aditivo que permitiu ao Blanver produzir o antirretroviral sem licitação, o preço cobrado foi de R$ 401,4 mil, ou 300% maior.
Operações têm dois pesos e duas medidas
O dossiê aponta ainda uma mudança de procedimento da Funed no pregão de 24 de junho de 2008. A fundação decidiu licitar, em apenas um lote, a produção de 11 medicamentos básicos, entre eles ácido fólico, paracetamol e furosemida.
Até então, as licitações eram divididas em um lote para cada item, favorecendo a participação de mais laboratórios e reduzindo a dependência da Funed em relação a eventuais problemas de produção.
A Blanver foi a vencedora do certame, que resultou num contrato de R$ 16,3 milhões. Os medicamentos eram os mesmos que estavam no pregão 04/2005, até então a cargo de cinco laboratórios. A exceção eram os líquidos. "Coincidentemente, a Blanver não tinha linha de produção para medicamentos líquidos", questiona o autor das denúncias.
De acordo com a Lei de Licitação, os lotes licitados em 2005 poderiam ser renovados até 2010. A Funed não explicou os motivos da mudança de procedimento, e a Blanver informou apenas que "a licitação favoreceu a concorrência". (AR)
Produção
Capacidade esgotada. Os contratos investigados foram firmados entre 2006 e 2010. Para atender à crescente demanda do SUS, a Funed, que fabrica os medicamentos, precisou terceirizar parte da produção.
Prejuízo
Sem licitação, remédio contra Aids custou três vezes mais
Em junho de 2008, a Funed realizou novo pregão, desta vez para contratar empresa para industrialização de nevirapina 200mg, usado no tratamento da Aids e da hepatite. A Blanver venceu com o preço de R$ 1,9 milhão, acima da estimativa inicial da fundação antes do certame. Os representantes das empresas Mappel e Pharlab, que também estavam na disputa, deixaram a sessão antes do término.
No dia 13 de março de 2009, a Funed firmou contrato sem licitação no valor de R$ 2,432 milhões, com a Blanver, para a produção da mesma nevirapina. Como havia um contrato em vigor para produção desse remédio, a Funed poderia simplesmente prolongá-lo, como prevê a lei.
Além de dispensar a licitação no novo contrato, a fundação pagou 28% a mais pela nevirapina ao laboratório Blanver, o que significou uma diferença de R$ 532,8 mil aos cofres públicos de Minas.
O modus operandi se repetiu em outros contratos. No dia 30 de maio do mesmo ano, a Funed contratou novamente a Blanver sem licitação, desta vez para a produção de 8,2 milhões de comprimidos de lamivudina+zidovudina 150/300mg. O valor: R$ 6,2 milhões, por 180 dias. O preço por unidade foi de R$ 0,75.
A lamivudina + zidovudina é o mesmo medicamento que a Pharlab já produzia na data do contrato para Funed, após vencer pregão realizado em 2007, com preço unitário três vezes menor: R$ 0,25.
Governo diz apenas que cumpre a lei
Ex-presidente da Funed diz que não se sente à vontade para comentar caso
Presidente da Fundação Ezequiel Dias (Funed) no período em que os contratos com a Blanver foram fechados, Carlos Alberto Pereira Gomes disse a O TEMPO que não se sente à vontade para comentar as denúncias porque não está mais à frente da instituição.
"Não sou mais autoridade lá, não posso responder pela Funed, acredito que a própria uned vá se posicionar", afirmou. Pereira Gomes deixou o cargo em 2010 e assumiu a subsecretaria estadual de Vigilância em Saúde.
Questionada sobre as dúvidas existentes em cada um dos contratos firmados com o laboratório, a Funed limitou-se a informar, em nota enviada pela Superintendência de Imprensa da Secretaria de Estado da Saúde (SES), que "todos os processos licitatórios realizados pela instituição seguem os procedimentos previstos em lei e foram realizados em conformidade com os princípios da administração pública estadual".
A reportagem tentou, sem sucesso, falar com o então diretor industrial da Funed, Dalmo Magno de Carvalho, responsável pelas licitações para terceirização de produção.
Por meio de nota, o diretor da Blanver, Sergio Frangioni, disse que a empresa "atua e sempre atuou seguindo os mais rígidos padrões éticos, respeitando as leis vigentes, e nunca foi favorecida por qualquer órgão público ou privado". Ele também se disse à disposição das autoridades competentes para fornecer os esclarecimentos necessários.
A nota diz ainda que, mesmo entendendo que a maioria dos questionamentos deva ser feita à Funed, "aditivos contratuais não são incomuns em negócios com os governos", desde que tenham anuência da autarquia envolvida.
O diretor classificou como leviana a denúncia de que a empresa não tem experiência na produção de antirretrovirais. A nota diz que a empresa já fornecia lamivudina+zidovudina diretamente ao Ministério da Saúde antes de atender a Funed, em 2005.
Embora não tenha respondido por que usou apenas o certificado de capacidade técnica fornecido pela Funed nos pregões na própria fundação, a Blanver garantiu que possui atestados emitidos por outros laboratórios, o que seria uma prática comum nesses processos.
Em relação à diferença de 28% nos preços cobrados para a produção da lamivudina+zidovudina por dispensa de licitação em 2009 e no pregão de 2008, Sérgio Frangioni diz que, em 2009, a Blanver foi responsável pela compra das matérias-primas e demais insumos. Já o pedido anterior foi feito com a Funed fornecendo os insumos. Além disso, os prazos de entrega foram diferentes, por isso a diferença de preços.
Contratos preveem a produção de genérico
As relações entre a Funed e a Blanver vão além da terceirização da produção de medicamentos contra a Aids para atender o SUS. Em fevereiro deste ano, a fundação anunciou que vai produzir pela primeira vez no país o genérico do tenofovir, remédio importado de alto custo que integra o coquetel antiAids, em parceria com a Blanver. O laboratório Nortec disponibilizou o ativo e a Blanver e a Funed fizeram a formulação do comprimido.
O Ministério da Saúde considera o tenofovir um item estratégico. Segundo dados da Coordenação Geral de Recursos Logísticos do Ministério, o antirretroviral é um dos itens mais caros do programa - corresponde a quase 10% dos gastos de tratamento do programa DST/Aids - e é utilizado por mais de 30 mil pacientes em todo o país. (AR)
Atuação
A Funed é o laboratório oficial do governo de Minas. Produz atualmente dois medicamentos antirretrovirais: nevirapina e lamividuna+zidovudina, que compõem o coquetel antiAids.
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