Enquanto na capital federal um grande muro erguido no meio da praça dos Três Poderes separa os manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment, em São Paulo a segregação é mais sutil: a direita se concentra na avenida Paulista, enquanto a esquerda ocupa o Anhangabaú. A distância entre o vale e o topo da colina não é apenas material, como o muro de Brasília: é essencialmente simbólica.
Como explica Ecléa Bosi em seu livro Memória e Sociedade, as “pedras da cidade” são os suportes materiais da nossa imaginação: cada um desses espaços representa uma experiência vivida, um momento de nossa própria formação. Não é por acaso que a esquerda escolheu o Anhangabaú: uma longa tradição transformou o centro na principal arena das lutas sociais na cidade.
Talvez o marco inicial dessa opção tenha sido a “batalha da Praça da Sé”, em 7 de outubro de 1934. Os integralistas de Plínio Salgado tinham anunciado a realização de um grande desfile no local – uma demonstração de força inspirada na Marcha sobre Roma, de Mussolini. Em resposta, todos os grupos de esquerda – anarquistas, comunistas, trotskistas, sindicalistas–se reuniram para barrar a manifestação. O confronto deixou seis mortos e trinta feridos. Após quatro horas da batalha, os integralistas fugiram.
As manifestações no centro só voltaram a ganhar força em 1945, na redemocratização do país. A princípio, o PCB promoveu um grande comício no Pacaembu para celebrar a libertação de Luiz Carlos Prestes, mas depois adotou o Anhangabaú, como nos grandes comícios realizados em 5 de janeiro de 1947 (com 100 mil pessoas) e 4 de novembro, que reuniu Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes. O mesmo cenário também abrigou as grandes manifestações da campanha “O Petróleo é Nosso”, em 1948.
A esquerda voltou ao centro durante o regime militar: a missa na Catedral da Sé em memória do jornalista Vladimir Herzog, em 31 de outubro de 1975, foi o maior protesto contra a ditadura realizado após a decretação do Ato Institucional nº 5, em 1968. Depois dele vieram as grandes manifestações da campanha das diretas-já: em 25 de janeiro de 1984, o comício na Sé reuniu cerca de 300 mil pessoas. Foi seguido por outro no Vale do Anhangabaú, em 16 de abril, com mais de um milhão de pessoas.
Na campanha de Lula à Presidência, em 1989, Lula voltou aos palcos preferidos do antigo PCB: depois de um grande comício no Pacaembu, Lula participou no dia 12 de novembro de um gigantesco ato na Sé, que reuniu um público equivalente ao do comício das diretas, em 1984.
Isso não significa que a esquerda também não tenha utilizado a avenida Paulista: ela foi o cenário da comemoração da vitória de Lula na eleição presidencial de 2002, e voltou a ser ocupada pela grande manifestação contra o impeachment de Dilma, em 18 de março deste ano. Mas nunca teve, para a esquerda, a mesma densidade histórica adquirida pelo centro.
A avenida da eliteInaugurada em 1891, a avenida Paulista passou a ser ocupada, a partir de 1910, pelas mansões dos grandes fazendeiros de café. Ela logo passou a abrigar o Carnaval da elite paulistana, conhecido como Corso, que consistia num desfile de carruagens e conversíveis com foliões ricamente vestidos.
A partir de 1956, com a inauguração do Conjunto Nacional, os casarões começaram a ser substituídos por edifícios comerciais, uma tendência que se acentuou após a inauguração da nova sede do Masp, em 1968. A avenida se transformou assim no principal centro financeiro do País.
As manifestações na Paulista são relativamente recentes. Elas começaram de fato quando a torcida do Corinthians decidiu festejar ali o título de campeão paulista de 1977. A partir dos anos 90, como observa Heitor Frúgoli Jr. no livro Centralidade em São Paulo, a avenida passou a ser utilizada para protestos de bancários, metroviários, professores e médicos em greve. Depois passou a acolher a Parada Gay e outras celebrações de vulto, como a Marcha para Jesus, mais tarde empurrada para a zona norte.
Mas, como a avenida sempre abrigou os principais símbolos da riqueza paulistana – antes as mansões dos barões do café, e hoje os grandes bancos e a Fiesp –, acabou sendo adotada pela direita no decorrer da atual crise política. Mas nem sempre foi assim. Até o início dos anos 60, a direita também preferia o centro velho, que até então ostentava um comércio sofisticado (na Barão de Itapetininga) e uma grande concentração de cinemas (na Ipiranga e na São João).
As grandes manifestações contra Getúlio Vargas durante a Revolução de 1932 ocorreram na praça da Sé e no Largo São Francisco. Depois disso, a maior concentração ocorreu em 19 de março de 1964, antes do golpe militar: a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” reuniu cerca de 500 mil pessoas, que seguiram da praça da República até a praça da Sé, passando pela rua Direita.
Após a implantação da ditadura, os conservadores abandonaram as ruas. Só voltaram agora, para exigir o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. E a avenida da Fiesp logo se revelou o lugar ideal para suas manifestações – que tiveram início em 15 de março de 2015 e culminaram no grande protesto do dia 13 do mês passado. Até quando esse casamento simbólico vai perdurar, ninguém sabe. Hoje a Paulista já começa a perder corporações para a Faria Lima, a Berrini, a Marginal Pinheiros. E a disposição da direita de ir às ruas em geral dura pouco. Quando ela voltar, talvez escolha outra avenida.
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