domingo, 1 de março de 2015

Crônica da destruição do cerrado

A ideologia mórbida do capitalismo rural detonou o bioma mais antigo no país - responsável por quase 20 mil nascentes - e isso impacta o Brasil inteiro.



O professor Altair Sales Barbosa, da PUC de Goiás, criador do Memorial do Cerrado, em Goiânia, nos últimos anos tem argumentado que o cerrado como bioma não existe mais, tamanha a destruição pelo avanço do agronegócio. Ele não é o único. Os mais otimistas consideram que em 2030 o cerrado não existirá mais, seguindo a média de extinção de dois milhões de hectares por ano. Ou seja, em 45 anos, contando do início da década de 1970 – O Programa de Desenvolvimento do Cerrado, chamado polo centro pelos militares, foi instituído em 1975-, a ideologia mórbida do capitalismo rural brasileiro detonou o bioma mais antigo no país, responsável por quase 20 mil nascentes, que abastecem oito das 12 regiões hidrográficas. As quatro mais importantes: do rio Paraná, do rio São Francisco e dos rios Araguaia e Tocantins.

Como diz o professor Altair Sales as águas que nascem no cerrado abastecem as grandes bacias do continente sul-americano, e todas elas nascem de aquíferos, sendo os três mais importantes o Guarani, o Bambuí e o Urucaia. O cerrado é conhecido pela pobreza de nutrientes no solo, embora tenha 12.365 espécies de plantas catalogadas, além do excesso de alumínio, o que aumenta o problema. Então são plantas que crescem retorcidas, as folhas parecem couro, a densidade é menor, embora o bioma em si tenha algumas divisões, desde regiões com gramíneas, arbustos até árvores de 30 metros.

Por ser o mais antigo e por ter problemas de nutrientes, também é, por ironia da história, o que mais limpa a atmosfera, porque as plantas captam mais gás carbônico. Porém, o cerrado é conhecido por ser uma floresta de cabeça para baixo, em função do intrincado de raízes e da profundidade que atingem. Justamente por isso, seguram a água da chuva, carregam o lençol freático e abastecem os aquíferos. Parece perfeito. Mas o cerrado entrou na rota da morbidez do agronegócio. Um detalhe importante: ele é plano na sua maioria, tinha um clima estável, com duas estações bem definidas – das águas e da seca. E o definitivo: suas terras eram desvalorizadas.

Hoje são mais de 50 milhões de hectares de pastagem, mais de 14 milhões de lavouras permanentes e milhares de carvoarias. Além da ocupação para produção de carne e grãos também queimaram o cerrado para abastecer os fornos das siderúrgicas de Minas, depois as guzeiras do Maranhão, da Bahia, do Pará. O Brasil é rico em ferro, mas ele precisa ser limpo das impurezas, então o ferro precisa ser queimado e transformado em ferro-gusa, que é o ingrediente do aço.

Os escravos faziam isso na época do império, enterravam a madeira em covas e transformavam 100 toneladas em seis toneladas de carvão, fato descrito no livro de Warren Dean – A Ferro e a Fogo -, que conta a destruição da Mata Atlântica. Minas Gerais sempre centralizou a produção de ferro gusa no país, foi onde o cerrado sofreu o primeiro golpe. Dali para o Centro-Oeste, onde o boi já havia aberto o caminho foi um passo. Em seguida os pesquisadores descobriram as fórmulas para corrigir a acidez das terras e o resto a indústria química resolveu – fertilizantes e veneno.

Sem dúvida, o Brasil é o maior produtor de soja, o maior exportador e tem o maior rebanho comercial do mundo. Mais da metade disso é a contribuição do cerrado. Entretanto, a história não acaba aqui. Vejam o que informa o pesquisador da Embrapa, Jorge Inoch Werneck Lima:

“- O cerrado contribui para oito das 12 regiões hidrográficas do país, 70% da água que sai na foz do rio Tocantins-Araguaia vem do cerrado, 90% do que sai na foz do rio São Francisco também vem do cerrado e 50% do que sai na foz do rio Paraná, inclusive da água que chega a Itaipu. Mas 100% da água que abastece a represa de Três Marias (MG) são do cerrado, 90% da água que abastece a represa de Xingó e 70% da água que chega a Tucuruí são do cerrado”.

A recarga dos aquíferos, que abastecem as bacias dos rios citados ocorre pelas bordas, nas áreas planas, onde a água pluvial infiltra e é absorvida cerca de 70% pelo sistema radicular da vegetação nativa, alimentando num primeiro momento o lençol freático e lentamente vai se armazenando nos lençóis mais subterrâneos, explica o pesquisador da Embrapa. Se não tem mato nativo, que foi transformado em carvão – a lenha do cerrado queima três dias dentro do forno - ou simplesmente queimou ao léu para dar lugar a pastagens africanas, a soja chinesa ou a cana europeia, o que acontecerá? Ora, dedução lógica, simples: não haverá água.

Pois justamente é essa a essência da morbidez do agronegócio: destruir para construir e depois, como diziam os colonizadores portugueses, azar de quem vem atrás. Uma citação do professor Altair Sales Barbosa:

“- Em média, 10 pequenos rios do cerrado desaparecem a cada ano. O rio que abastece a bacia vê seu volume diminuindo. Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada, porque há uma reserva nos aquíferos. Mas daqui a cinco anos não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao cerrado a partir dos anos 1970. Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então esses rios vão desaparecer. Por isso, falamos que o cerrado é um ambiente em extinção.”

Claro, na década de 1970, os arautos da morbidez argumentavam dessa maneira, não tínhamos informação suficiente sobre a importância das matas ciliares, de preservar pelo menos 20% da vegetação nativa, como diz a lei, entre outras medidas simples e eficazes. Nada disso, basta ver as novas implicações do código florestal recentemente aprovado – restringir matas em córregos, afluentes, rios; diminuir áreas de preservação permanente ou compensar em outras regiões. Só para esclarecer: o cerrado tem apenas 2% em unidades de conservação e pouco mais de 2% de áreas indígenas. 

Ainda não acabou. A fronteira agrícola chegou ao sul do Piauí e ao sul do Maranhão e ao oeste da Bahia, onde já tem mais de um milhão de hectares plantados com soja e algodão – no Piauí o número passa dos 600 mil hectares. Se somarmos as duas áreas de cerrado do Maranhão e Piauí são mais de 20 milhões de hectares. Os arautos da morbidez pretendem ocupar seis milhões. Qual a notícia no sul do Piauí? As carvoarias estão detonando as áreas de cerrado. Qual a informação mais atualizada sobre uso de carvão de mata nativa no Brasil? Pelo menos a metade da produção total é de mata nativa.

Um trecho do manifesto divulgado pela Associação da União das Aldeias Apinagés, do Tocantins, em dezembro de 2014:

“- Denunciamos a forma criminosa como as empresas estão chegando e avançando sobre as matas ciliares e nascentes, que correm dentro da terra Apinagé, com licenças ambientais liberadas pelo Instituto Natureza do Tocantins”.

Última semana de fevereiro o IRPAA, de Juazeiro (BA) divulga um comunicado dizendo que algumas comunidades da região estão com problemas de falta de água para beber, que os caminhões pipa não estão atendendo a demanda. Juazeiro fica abaixo do lago de Sobradinho, o maior da América Latina e que está com pouco mais de 15% da sua capacidade. Água agora só para produção de energia elétrica.

E em São Paulo. O Aquífero Guarani abastece 80% dos municípios do estado. Com a realidade da crise hídrica, como dizem os arautos da morbidez urbana, fiz uma pesquisa sobre construção de poços artesianos. O Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas, da USP, dirigido pelo professor Reginaldo Bertolo realizou um levantamento entre as empresas construtoras, no final do ano passado. Diz ele:

“- A corrida para construção de poços profundos clandestinos é grave, tanto pela possibilidade de esgotamento dos aquíferos, quanto por causa dos riscos da qualidade da água extraída. Na região metropolitana foram 400 perfurações realizada pelas construtoras, o que aumenta em 43 milhões de litros/dia retirado dos aquíferos”.

Segundo o Departamento de Águas e Energia de São Paulo, que autoriza a construção de poços artesianos, são 27.312 cadastrados. Em Ribeirão Preto, por exemplo, já é proibido construir poço artesiano na área central da cidade, em consequência do rebaixamento do Aquífero Guarani. Consultei outra região – São José do Rio Preto -, também abastecida pelo aquífero. O Diário da WEB, jornal da cidade, apontava em dezembro passado que 88% dos poços da região são irregulares. Segundo a unidade do DAEE, de Rio Preto, dos 3,5 mil poços perfurados no município apenas 400 estão cadastrados. 


No próximo dia 11 de setembro, o Dia Nacional do Cerrado decretado desde 2003, comprem velas, chorem e lamentem o fim do bioma mais antigo do país.

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