No século 19, o anarquista russo Michael Bakunin escreveu que
o Estado “é a mais flagrante, a mais cínica e a mais completa negação da humanidade (...). Isso explica por que reis e ministros, passados e presentes, de todos os tempos e países – estadistas, diplomatas, burocratas e soldados –, se julgados do ponto de vista da moralidade e da justiça humanas, bem merecem cem, mil vezes, ser condenados a trabalhos forçados ou às galés.”[2]
O arsenal nuclear construído por EUA e Rússia e as frágeis tentativas para desativá-lo são prova de que Bakunin acertou mais uma vez. Os estoques nucleares de Washington e Rússia ultrapassam 10 mil ogivas, todas elas entre 5 e 25 vezes mais potentes que a bomba que destruiu Hiroshima. O recém assinado Novo Tratado para Redução de Armas Estratégicas [sigla START] implicará a destruição de, no máximo, 800 ogivas. Em outras palavras: depois de reduzidos por nossos magnânimos líderes, o poder nuclear que está nas mãos deles e pesa sobre as nossas cabeças, passou, de 150 mil vezes maior para apenas 140 mil vezes maior que o da b omba que destruiu Hiroshima... Muito obrigado, Sr. Obama.
Como se não bastasse, a recém divulgada “Nova Postura Nuclear dos EUA” [ing. US Nuclear Posture Review (NPR)] informa que aquelas armas podem, sim, ser empregadas. A frase chave da “Nova Postura” é a seguinte: “os EUA não usarão nem ameaçarão usar armas nucleares contra Estados não-nucleares que assinem a “Nova Postura” e cumpram seus compromissos de não-proliferação.”
Apoiadores da “Nova Postura Nuclear” entendem que teria havido algum avanço em relação à “Postura” de Bush, porque lá se diz, agora, que os EUA não retaliarão com armas nucleares, contra ataques por arma química ou biológica, embora, claro, ninguém duvide – e nem precisavam repetir! – que os EUA responderão “com resposta militar convencional devastadora”.
Mesmo assim, as armas nucleares ainda têm papel importantíssimo para o governo Obama. Primeiro, podem ser usadas contra outros Estados que também tenham armas nucleares (como China e Rússia), se atacarem os EUA com armas convencionais, biológicas ou químicas, quer dizer: mesmo que aqueles Estados não usem armas atômicas. Segundo, as bombas atômicas poderão ser usadas contra “atores não Estatais”, como a Al-Qaeda, como explicou Robert Gates: “todas as alternativas estão sobre a mesa, em relação a atores não Estatais que podem obter armas nucleares”[3] . Isso implica que o país no qual estejam os terroristas enfrentará ataque nuclear, assine ou não assine seja qual for o tratado, e concorde ou não com a “Nova Postura Nuclear dos EUA”.
Em terceiro lugar, os países que Washington resolver que não se alinharam aos termos da “Nova Postura Nuclear” estão à mercê de ataque nuclear, possuam ou não possuam bombas atômicas. O caso, nesse caso, são Irã e Coreia do Norte. Contudo, dado que Washington não depende de fatos, só de suspeitas, e as contas são feitas em termos de “conosco ou contra nós”... a “Nova Postura Nuclear” implica que qualquer um que Washington decida que seja inimigo corre risco de morte.
Infelizmente, Obama não está em condições de inaugurar política realmente nova, e deu-se por satisfeito com garantir para si o ‘direito’ de ser o primeiro a ordenar ataque nuclear. E deixa intactas também, 200 ogivas nucleares guardadas em cinco países europeus (Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Turquia).
Em resumo, como Hans Kristensen da Federação dos Cientistas dos EUA conclui sua análise da “Nova Postura Nuclear”, o documento é “um desapontamento” para todos que esperavam que houvesse redução significativa no papel e na quantidade das armas nucleares”[4].
O Novo Tratado para Redução de Armas Estratégicas (START), por sua vez, fala de dois tipos de redução: no número de ogivas nucleares e no número de aviões de lançamento dessas ogivas.
As ogivas são a parte de um míssil ou de uma bomba onde fica contida a carga atômica; atualmente, os EUA têm 2.200 ogivas estratégicas; e a Rússia, 2.600. Nos termos do novo Tratado START, ambos devem reduzir seus arsenais para 1.550 ogivas utilizáveis até 2017. A imprensa informou que os estoques seriam “cortados em cerca de 30%, em relação ao Tratado de Moscou” assinado por Bush em 2002, que impusera o limite de 2.200 ogivas.
O problema desses “30%” é que não haverá 30% de redução de coisa alguma: a redução alcançará, no máximo, 10-15%. Isso, por efeito de uma cláusula de cálculo incluída no Tratado, pela qual todas as ogivas associadas a veículos bombardeiros serão contadas como 1 (uma) ogiva. Por exemplo, se um bombardeiro nuclear dos EUA carregar 20 bombas atômicas, a coisa será contada como uma bomba atômica, uma ogiva, não 20.
Fácil ver que o limite de 1.550 ogivas só serve para ocultar muitas outras ogivas, todas atômicas. Quantas, exatamente, dependerá de como EUA e Rússia distribuirão os cortes nos orçamentos, entre submarinos, mísseis terra-ar e aviões bombardeiros nucleares. Estima-se que quando se alcançar o limite de (digamos!) “1.550” ogivas em 2017, os EUA terão disponíveis para entrar em ação cerca de 1.800 ogivas nucleares; e a Rússia, pouco menos de 2.200 – o que é redução de 13% dos atuais arsenais, não de 30%.
Em resumo, o Tratado não dá qualquer incentivo para que se desativem as bombas atômicas já instaladas em aviões e submarinos bombardeiros e, por isso, o número de ogivas a serem desativadas é muito menor do que EUA e Rússia estão alardeando. Além disso, o Tratado não exige que alguma ogiva seja efetivamente destruída: basta que seja recolhida, ‘tirada da prateleira’ e guardada, para o caso de ser necessária quando, então, poderá ser usada. E não se fala nem de desmontar nem, sequer, de tirar da prateleira, as 200 armas atômicas ditas “táticas”, que os EUA mantêm em bases européias.
Veículos bombardeiros são o meio de levar as bombas atômicas até o território inimigo onde serão detonadas; há três tipos de veículos bombardeiros: aviões bombardeiros, mísseis balísticos terra-ar intercontinentais [ing. Intercontinental Ballistic Missiles, land-based (ICBMs)] e submarinos que disparam mísseis balísticos [ing. Ballistic Missiles Launched by Submarines (SLBMs)]. O Tratado impõe limite de 700 desses veículos para cada lado. Outra vez, a redução é mínima. A Rússia tem hoje cerca de 600 desses veículos e não terá de reduzir coisa alguma. Os EUA, 798; a redução será de 12%, para chegar aos 700.
O Novo Tratado para Redução de Armas Estratégicas” (START) é movimento quase imperceptível, muito lento, em direção ao desarmamento. Especialista em questões nucleares, que opera nos EUA, resumiu bem: “como quase todos os tratados de controle de armas, o novo Tratado START apenas põe no papel mudanças que acontecerão com ou sem o tratado.” (...)
Uma questão que surge tanto no documento “Nova Postura Nuclear” quanto no Novo Tratado START é a de saber se o governo Obama construirá novas armas nucleares. Na campanha para eleger-se, Obama prometeu que não. Apesar da promessa, o orçamento para 2011 divulgado em fevereiro, prevê aumento de 10% nos gastos para armamento atômico. E a promessa?
A resposta depende de como se defina a expressão “nova arma nuclear”. Armas nucleares envelhecem; quando envelhecem, em vez de serem destruídas, são reformadas e há vários modos de prolongar-lhes a vida (digamos) ‘útil’, desde a reconstrução da ogiva, com partes novas e conservando o formato original, até a fabricação de componentes novos, jamais testados, para substituir os velhos. Ninguém sabe dizer com certeza o que significaria a expressão “novas armas nucleares”.
No documento “Nova Postura Nuclear”, lê-se que “os EUA não desenvolverão novas ogivas nucleares” mas que, sim, prolongarão a vida de ogivas já envelhecidas, mediante recurso a todos os métodos disponíveis. Muitos analistas já concluíram que, na prática, isso significa que, sim, haverá novas ogivas; e que o Tratado permite, inclusive, o desenvolvimento do programa de Bush de “Substituição Confiável de Ogivas Nucleares” [ing. Reliable Replacement Warhead (RRW)].
E há ainda outro meio pelo qual Obama pode estar-se autoautorizando a produzir novas armas nucleares: ele está construindo novos veículos bombardeiros para ogivas nucleares, como o F-35 Joint Strike Fighter, que substituirá o submarino nuclear da classe Ohio, e está modernizando os mísseis balísticos existentes, como o terra-ar Minuteman III e o modelo de lançador instalado em submarinos, o Trident II, além dos planos para substituir o Míssil Cruzador Lançado de Aeronave [ing. Air Launched Cruise Mis sile (ALCM), que pode ser nuclearizado. Podem ser consideradas novas armas nucleares, se são ‘apenas’ veículos transportadores- lançadores de ogivas nucleares?
O fundo do poço é o seguinte: pode-se ainda discutir o que seria uma “arma nuclear” e se Obama está ou não está construindo novas bombas atômicas. Mas não há dúvida alguma é que um presidente que realmente estivesse comprometido com o desarmamento nuclear jamais cogitaria de prolongar a vida [digamos] ‘útil’ das bombas existentes e as destruiria antes até de que se tornassem obsoletas. Obama absolutamente não é esse presidente.
Há quem creia que bombas atômicas contribuem para manter o equilíbrio entre as grandes potências, o que tornaria todo o sistema internacional mais estável. A verdade é que houve vários ‘acidentes’ nucleares ao longo da Guerra Fria e depois dela, sempre devidos a mau funcionamento dos sistemas ou a erros humanos. Manter grandes arsenais atômicos só faz aumentar o risco de outros acidentes e o risco de que, algum dia, aconteça algum acidente muito mais grave. (...)
De Julien Mercille
quarta-feira, 21 de abril de 2010
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