segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Ocupações nas escolas: Quando o povo é cão de guarda da opressão

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Deve ser um tanto quanto desesperador para alguém que acredita no discurso que é só obedecer às regras e às autoridades para a vida dar certo ver a insatisfação e a mobilização obterem resultados. Afinal de contas, essa pessoa fez sempre tudo o que lhe mandaram fazer: não reclamar, não atrapalhar, não questionar leis, regras e tradições, não sair da linha. E a vida não melhorou, pelo contrário.
Daí aparece uma molecada maluca que resolve dizer “não” para o que foi decidido em nome deles – fechamento de escolas e realocação forçada de alunos – e ocupam unidades de ensino e fecham vias públicas até o governo estadual resolver voltar atrás. Chantagem da grossa, dizem uns. Democracia, retruca a História.
A quantidade de comentários, textos e opiniões que ouvi nas últimas semanas girando em torno da máxima “quem eles pensam que são?” poderia completar um livro. Talvez do tamanho da bíblia.
E por falar nas sagradas palavras do cristianismo, houve até respeitável instituição que parafraseou Êxodo 20:12, praticamente usando um “honra teu pai e tua mãe” para pedir que os alunos abandonassem aquela esbórnia e que os pais tomassem as rédeas da situação. Se Deus existir, deve ter passado vergonha alheia com essa.
Esse pessoal representa o melhor da filosofia “para o buraco, eu não vou sozinho”, muito conhecida desde que o primeiro hominídeo andou de pé e um outro, com inveja da conquista do esforço do primeiro, lhe deu uma bordoada para que voltasse a andar de quatro.
O “quem esses moleques pensam que são?” possui variações como “se tive de trabalhar desde cedo e, hoje, sou uma pessoa com bom caráter, também acho que criança deveria trabalhar para não cair na vagabundagem”. Ou “trabalhei a vida inteira e nunca tive uma casa própria; agora, vem um bando de desocupados e invade um terreno para chamar de seu? A polícia tem de descer o cacete nesse povo para aprender que patrimônio só surge do suor e do trabalho”.
Nem as pessoas que usam crianças para ganhar dinheiro ou os donos de terrenos improdutivos seriam tão virulentos assim. Nada como uma sociedade doutrinada para servir de cão de guarda.
Mas estamos entre amigos aqui, então posso ir direto ao significado dessas frases: “Se fui covarde e não tive coragem de lutar pelo que acredito ser uma vida digna, permanecendo na ignorância – que é um lugar quentinho – e preferindo ruminar silenciosamente entre os dentes a minha infelicidade, quero que o mundo faça o mesmo”.
Resgato o que já havia dito aqui antes. Quem pensa assim não entende, nem desenhando, que educação, moradia, alimentação, saúde são direitos fundamentais. Ou seja, você tem direito a eles simplesmente por comungar da mesma dignidade garantida ao nascimento a raça humana. E brada: “E esses vagabundos pagam os impostos para poder ter direitos fundamentais?”
Esses mesmos repetem bobagens como “a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou”. Pois acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço. Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação. Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica.
Quando vejo milhares de jovens ocuparem uma escola pelo direito de estudar, eles estão cumprindo o que se espera de um cidadão. Por isso, é difícil concordar com quem pediu para que a polícia fizesse o que fosse preciso para acabar com essa loucura, fazendo o papel de soldado não-remunerado de gestores públicos.
“Por que se acham melhores do que eu que não faço baderna e cumpro tudo o que me dizem para fazer?” Não é uma questão de melhor ou pior. E sim de aceitar bovinamente um destino em uma sociedade que, apenas teoricamente, não é de castas. Ou lutar para sair dessa condição.
Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos, porque aprendemos a lutar contra a nossa própria dignidade ao comprar o discurso empacotado de grupos no poder.
A polícia, que desceu o cacete de forma criminosa nos estudantes em São Paulo, não é a única responsável por manter a ordem do povo. O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho, governos e a própria mídia, garante seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia. Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça. Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária. Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível grupos se manterem no poder (em âmbito federal ou estadual) por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica.
Adoraria discordar de Oscar Wilde, como podem imaginar. Mas, nesse caso, uma citação dele que gosto de repetir por aqui cai como uma luva: “Há três tipos de déspotas. Aquele que tiraniza o corpo, aquele que tiraniza a alma e o que tiraniza, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. O primeiro é chamado de príncipe, o segundo de papa e o terceiro de povo”.
De verdade, não sei de quem tenho mais medo. Da polícia ou desse povo. Porque sabemos o que a polícia faz. Mas não imaginamos até onde esse povo pode ir.

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