quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Recordar é viver: Os documentos do mensalão tucano

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IstoÉ revela relatório da Polícia Federal com a radiografia do caixa 2 da campanha do PSDB ao governo de Minas Gerais em 1998. Ele compromete um ministro de Lula e um senador. Envolve o governador Aécio Neves, deputados federais e estaduais em 17 partidos.
Nos próximos dias, o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, apresentará ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma peça jurídica capaz de provocar um terremoto político tão devastador quanto o do escândalo do “mensalão”. É a denúncia contra os políticos envolvidos no Inquérito Policial 2.245-4/140-STF, que investiga o chamado “tucanoduto” – o caixa 2 da malsucedida campanha do senador Eduardo Azeredo ao governo de Minas Gerais, em 1998. Com mais de 5 mil páginas, o inquérito tem num relatório da Polícia Federal a completa radiografia de como foi montado o esquema e quem se beneficiou com ele.
Obtidos com exclusividade por IstoÉ, os documentos que integram as 172 páginas dessa conclusão são mostrados pela primeira vez. Eles atingem diretamente o atual ministro das Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia (à época vice-governador e candidato a deputado federal), e envolvem o governador de Minas, Aécio Neves (que na ocasião tentava sua reeleição à Câmara). Aécio é nomeado numa lista assinada pelo coordenador financeiro da campanha, Cláudio Mourão, como beneficiário de um repasse de R$110 mil.
relatório compromete ainda 159 políticos mineiros que participaram da disputa de 1998, entre eles a então senadora Júnia Marise e 82 deputados, entre federais e estaduais. No total, 17 partidos são citados, incluindo o PT, acusado de ter recebido R$880 mil, divididos entre 34 sacadores, sendo cinco deputados federais (confira a lista completa ao final dessa reportagem).
“Organização criminosa” – De acordo com a denúncia, o esquema capturou mais de R$100 milhões, com desvio de verbas de estatais e empréstimos bancários. Oficialmente, a campanha de Azeredo custou R$8 milhões. A intermediação entre o núcleo da campanha e os políticos favorecidos ficou a cargo da SMP&B, a agência do publicitário Marcos Valério, que, segundo a polícia, lavou parte do dinheiro com notas fiscais frias. Foi um modo de operar que serviu de laboratório de testes para o que, quatro anos depois, viria a ser o “mensalão federal”.
Reservado a promotores próximos do procurador-geral, aos poucos assessores que frequentam o gabinete do ministro Joaquim Barbosa, do Supremo, e a um grupo seleto de policiais, o documento é demolidor. “Constatou-se a existência de complexa organização criminosa que atuava a partir de uma divisão muito aprofundada de tarefas, disposta de estruturas herméticas e hierarquizadas, constituída de maneira metódica e duradoura, com o objetivo claro de obter ganhos os mais elevados possíveis, através da prática de ilícitos e do exercício de influência na política e economia local”, diz o relatório da PF. Com diversos laudos periciais, extratos bancários e dezenas de depoimentos, o documento põe fim a uma batalha política entre oposição e governo que se arrasta há dois anos, desde que a CPI que apurou o “mensalão federal” se recusou a investigar o caixa 2 da campanha de Eduardo Azeredo em Minas.
Com base nas informações reveladas nesse relatório fica fácil entender por que houve tanta pressão dos tucanos e até a complacência do PT para não se abrir uma CPI exclusiva para esse caso. Na ocasião, o senador Delcídio Amaral (PT/MS), que presidia a chamada CPI dos Correios, classificou de “documento apócrifo” a lista elaborada pelo então coordenador financeiro da campanha de Azeredo, Cláudio Mourão, e que serviu de base para o trabalho da PF. Outra curiosidade: a denúncia da lista tinha sido feita por um companheiro do próprio partido de Delcídio, o então deputado estadual mineiro Rogério Corrêa. Mais curioso ainda: Paulinho Abi-Ackel, o filho do deputado Ibrahim Abi-Ackel, relator da CPI da Compra de Votos (e que também poderia ter investigado o caixa 2 mineiro), recebeu R$50 mil do esquema. Ele disse à polícia que prestou serviços de advocacia à campanha.
Nos recibos recuperados pela PF a partir da chamada “Lista de Mourão”, fica provado que o dinheiro “não contabilizado” dos tucanos irrigou não só a campanha de reeleição de Azeredo, mas de boa parte da elite da política mineira. O valor total rateado entre ela teria alcançado R$10,8 milhões.
“Em dinheiro vivo” – Com exceção dos 82 deputados federais ou estaduais que receberam, em nome próprio ou de assessores, depósitos feitos diretamente pelas empresas de Marcos Valério, não é possível por enquanto assegurar que os repasses ao restante dos 159 políticos, incluindo o então candidato a deputado federal Aécio Neves, tiveram origem no caixa 2 operado pelo publicitário e pelo núcleo central da campanha de Eduardo Azeredo. “Muitos dos saques foram em dinheiro vivo, o que dificulta o rastreamento”, garante um dos policiais que participaram dos trabalhos. Segundo a investigação da Divisão de Repressão a Crimes Financeiros, a maior parte da derrama aconteceu para a compra de apoio político no segundo turno da eleição de 1998, no qual Azeredo acabou derrotado pelo ex-presidente Itamar Franco.
Quem organizou grande parte dessa ação foi o ministro Walfrido dos Mares Guia. Na semana passada, IstoÉ publicou carta de sua assessoria, na qual ele reiterava que, em 1998, “não foi coordenador da campanha de Eduardo Azeredo”. “Mares Guia era candidato a deputado federal pelo PTB e cuidava de sua própria campanha”, diz a carta. Se tiver acesso ao depoimento do ex-prefeito de Juiz de Fora Custódio de Mattos, Walfrido pode talvez refrescar sua memória. Custódio diz que foi convocado por Walfrido para apoiar Azeredo no segundo turno, “tendo recebido a quantia de R$25 mil”, informa o relatório à página 111. “Consta transferência da SMP&B no valor de R$20 mil, sendo que Custódio não soube informar como recebeu o restante”, registra a PF. Na época, o ex-prefeito de Juiz de Fora se elegeu deputado federal e hoje, reeleito, é secretário de Desenvolvimento Social do governador Aécio Neves. Outros três citados integram o secretariado de Aécio: Olavo Bilac, de Ciência e Tecnologia, João Batista de Oliveira, de Direitos Humanos, e Elbe Brandão, de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha.
Nas suas diligências, a Polícia Federal encontrou quatro folhas manuscritas por Walfrido, com nomes de empreiteiras, siglas, abreviações, números e valores, muitos valores. Em seu depoimento, o ministro confirmou a autenticidade dos papéis e explicou ao delegado Luiz Flávio Zampronha que a anotação “HG”, que aparece ao lado de “1.000 mil”, significava Hélio Garcia, o ex-governador de Minas, que na época disputava o Senado. Colocada ao lado de “500 mil”, as iniciais “JM” se referem à então senadora Júnia Marise. Em seu depoimento, a assessora Maria Cristina Cardoso de Mello confirmou ter recebido um depósito da SMP&B de R$175 mil para Júnia Marise, como contrapartida de seu apoio a Azeredo, no segundo turno. Outro assessor da senadora, Antônio Marum, confirmou o recebimento de R$25 mil para saldar empréstimo contraído na campanha de 1998. Ou seja, do que foi possível confrontar com extratos bancários, as informações do dossiê original podem divergir nos números, mas não divergem em relação a nomes.
Mistério de R$1,8 milhão – Nos papéis de Walfrido, permanece o mistério quanto a um certo “TP 1.800 mil”. Apesar de ter revelado o significado das outras abreviações da lista, o ministro não soube dizer o que era esse R$1,8 milhão para TP. A polícia especula com a possibilidade de TP ser o anagrama de um partido político.
Oficialmente, o coordenador financeiro da campanha foi Cláudio Mourão, que deixou a Secretaria de Administração do primeiro governo de Eduardo Azeredo para se dedicar à reeleição do governador. Na prática, contudo, quem arrecadava era o então desconhecido Marcos Valério, enquanto o ministro Mares Guia ajudava a orientar as despesas.
Na página 1.767 do inquérito, Marcos Valério conta que a SMP&B entrou na campanha de Azeredo pela porta do atual presidente da Confederação Nacional dos Transportes, Clésio Andrade, que era sócio da agência e candidato a vice na chapa dos tucanos. Em 2002, Clésio se elegeu vice de Aécio Neves. Depois, saiu da política.
Foi Valério quem montou a principal fonte do caixa 2, a operação cruzada envolvendo a agência, as empresas estatais e os bancos. No inquérito, vários laudos periciais da PF mostram que Marcos Valério obteve um total de R$28,5 milhões em diversas operações de empréstimos com os bancos Rural, Cidade e de Crédito Nacional. Segundo a polícia, os empréstimos eram um subterfúgio para encobrir a origem ilícita das verbas tomadas de empresas do Estado, como a Companhia de Saneamento (Copasa), Companhia Mineradora (Comig), Banco do Estado (Bemge) ou Companhia Energética (Cemig). O delegado Zampronha concluiu que a lavagem do dinheiro seguiu um mecanismo semelhante ao do “mensalão do PT”, com a diferença de que, no caso dos mineiros, a garfada sobre os recursos públicos foi ainda mais explícita. Do ponto de vista legal, isso pode complicar ainda mais a vida de Marcos Valério e de todos os que participaram dessas operações.
Estatais – Um exemplo claro é o do patrocínio do Enduro da Independência, famosa prova de motocross pelas montanhas de Minas Gerais. Segundo a chamada “Lista do Mourão”, o governo, com o apoio de seis estatais, arrecadou R$10,67 milhões para essa promoção. Em seu depoimento, Mourão não admitiu que recursos desviados das estatais tivessem sido utilizados na campanha de reeleição. No entanto, nas análises financeiras realizadas pelo Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal detectou- se mais semelhanças que diferenças entre os valores apontados na lista de Mourão e os efetivamente gastos pelo governo e suas estatais.
As coincidências: a Cemig entrou com R$1.673.981,90 e a Copasa com R$1,5 milhão. Este mesmo valor coube à Comig, mas a “Lista do Mourão” aponta que a Comig tinha duas cotas enquanto na prática só houve o desembolso de uma delas. O Bemge, segundo a lista, participaria com R$1 milhão, mas a PF constatou que cinco empresas da holding deram cotas individuais de R$100 mil, totalizando metade do que se esperava. Em compensação, o Tesouro do Estado aportou R$4,576 milhões, mais que o dobro dos R$2 milhões registrados na “Lista do Mourão”.
Na matemática da PF, o governo e suas estatais entraram de fato com R$9.749.981,90, contra os R$10.673.981,90 previstos na lista. A questão principal, contudo, não é o que entrou, mas a mixaria que saiu. A PF apurou que a SMP&B repassou apenas R$98 mil para a Confederação Brasileira de Motociclismo. A diferença de operações desse tipo ajudava a montar o caixa 2 ou era usada para cobrir parte dos empréstimos que Valério tomava nos bancos, à semelhança do que fez no Mensalão Federal. Segundo a “Lista do Mourão”, dos mais de R$100 milhões que teriam sido arrecadados para a reeleição de Azeredo, apenas a SMP&B e a DNA (outra agência de Valério) “movimentaram R$53.879.396,86”.
Além das estatais mineiras, empreiteiras como a ARG, Queiroz Galvão, Erkal, Egesa, Tratex e Servix são citadas pela PF como patrocinadoras de doações irregulares. Segundo a PF, companhias privadas contribuíram com R$17,5 milhões para a campanha, através de transferências realizadas para as empresas de Marcos Valério. A ARG, por exemplo, fez depósitos totais de R$3 milhões, alguns às vésperas do primeiro turno. Eram valores pulverizados que transitavam por várias contas da DNA e, no final, parte desses recursos foi sacada em dinheiro vivo na boca do caixa. Durante a gestão de Azeredo, a ARG prestou diversos serviços ao Estado, como a duplicação da BR-381, que custou R$60 milhões. “A empreiteira ARG possuía motivação necessária para efetuar a doação irregular detectada, pois pretendia garantir futuros negócios”, avalia Zampronha.
Com Valério arrecadando, foi montado um “núcleo central” da campanha que traçava as estratégias. Segundo as investigações, ele era constituído pelo próprio governador Azeredo, pelo vice Walfrido dos Mares Guia e pelos secretários Álvaro Azevedo, de Comunicação, Cláudio Mourão, de Administração, e João Heraldo Lima, da Fazenda, hoje diretor do Banco Rural. Perdida a eleição, as relações entre eles mudaram e foi isso que permitiu à polícia mapear o esquema do mensalão mineiro tucano e, mais ainda, perseguir o rastro de negócios mal explicados – a ponto de a PF ter recomendado a prisão imediata de Marcos Valério, por perturbar as investigações e ocultar documentos, e a quebra de sigilo fiscal e bancário numa empresa do ministro Mares Guia.
A pista – “Como candidato, ocupei-me das tarefas políticas da campanha”, escreveu o senador Azeredo em carta enviada à IstoÉ na edição passada. “Reitero que não houve mensalão em Minas Gerais. Também não houve uso de dinheiro público na campanha de 1998, quando disputei a reeleição ao governo.”
A chamada “Lista do Mourão” representa ao mesmo tempo o pomo da discórdia entre os políticos mineiros e a principal pista oferecida à PF para radiografar o caixa 2 da campanha tucana em 1998. No seu depoimento, Cláudio Mourão confirma ser sua a assinatura aposta no documento, mas diz que não o elaborou. O Laudo nº 3319/05, do Instituto de Criminalística, descarta “a possibilidade de as assinaturas de Mourão terem sido transpostas de outro documento, montagem que seria facilmente detectada pelos instrumentos óticos utilizados nos exames”, diz o relatório da PF.
A briga – Essa lista só surgiu depois que Mourão decidiu processar Azeredo. O motivo principal da briga entre os dois foi uma dívida de campanha. Em 1999, Mourão cobrou de Azeredo um pagamento de R$500 mil, referentes à aquisição de veículos, através da locadora de seus filhos. Na conversa que os dois mantiveram, o senador tucano reconheceu que deveria honrar as dívidas de campanha, mas disse que não tinha dinheiro para isso. Segundo Azeredo, a partir daí o coordenador financeiro de sua reeleição foi se afastando, a ponto de protestar uma nota promissória assinada pelo próprio Mourão, com base numa procuração do ex-governador e que ainda estava em poder dele. Além disso, Cláudio Mourão teria proposto uma ação indenizatória no Supremo, que não a aceitou.
À medida que a campanha de 2002 tomou corpo e Eduardo Azeredo se viu numa disputa apertada com o atual ministro das Comunicações, Hélio Costa, ele decidiu resolver a antiga questão. Recorreu então a Mares Guia, que procurou Mourão. Nas negociações, o atual ministro das Relações Institucionais conseguiu fazer o ex-aliado reduzir a dívida: dos R$900 mil que Mourão passou a cobrar, baixou para R$700 mil. E quem pagou esse dinheiro a Cláudio Mourão? O cheque nº 007683 da agência 009 do Banco Rural, da conta cujo titular é Marcos Valério.
Segundo Azeredo, Walfrido o havia informado de que saldaria o débito com um empréstimo do Banco Rural – do qual o senador foi avalista. No dia 26 de setembro de 2002, uma semana antes da eleição de Azeredo para o Senado e uma semana depois de Marcos Valério pagar Mourão, o banco emprestou R$511 mil em nome da Samos Participação Ltda. Segundo Walfrido, disponibilizados pelo diretor João Heraldo, o exsecretário da Fazenda e ex-integrante do núcleo central da campanha. Azeredo arrecadou com amigos os R$200 mil restantes. E Marcos Valério foi reembolsado.
Quebra de sigilo – A Samos é uma holding patrimonial constituída para administrar os bens de Mares Guia e de sua família, com sede na residência do ministro em Belo Horizonte. Como então Walfrido pagou o Banco Rural para não ficar com o mico da dívida de Azeredo? Ao rastrear os créditos na conta da empresa no Banque Nationale de Paris Brasil, a polícia descobriu que eles tiveram origem em fundos de investimento cujos registros permanecem sob sigilo bancário. O ministro Joaquim Barbosa, do STF, solicitou à Receita Federal o levantamento fiscal da Samos. Os dados da quebra do sigilo são intrigantes. Em 2003, por exemplo, quando Walfrido já estava no Ministério do Turismo do governo Lula, a Samos declarou uma receita de R$7,18 milhões, mas teve uma movimentação de R$12,25 milhões. No ano anterior, a receita declarada foi bem menor, de apenas R$1,11 milhão. Mas a movimentação financeira foi quase o dobro, R$22,27 milhões.
“As informações [...] caracterizam indícios de irregularidade tributária”, registra Paulo Cirilo Santos Mendes, chefe da Divisão de Programação, Controle e Avaliação da Receita Federal. O caso da Samos foi encaminhado à Superintendência Regional para ser incluído no programa de fiscalização da Receita. Além dessa questão fiscal, iniciada no ano passado, o ministro Walfrido dos Mares Guia tem agora um encontro agendado com a questão legal. Se o procurador-geral achar que as provas da Polícia Federal são suficientemente fortes para pedir um julgamento ao Supremo Tribunal, ele pode vir a ser denunciado por lavagem de dinheiro, peculato e formação de quadrilha, como ocorreu com os operadores do “mensalão do PT”. É por isso que, a partir de agora, Walfrido também passa a ser uma questão política para o governo Lula. Afinal, depois de sofrer por dois anos o desgaste das acusações contra José Dirceu, Delúbio e companhia, o presidente bem que poderia ter ficado livre de ver o operador de outro mensalão como o responsável pela sua articulação com o Congresso.

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