segunda-feira, 5 de julho de 2010

"A transição está apenas começando"

Augusto dos Santos, ministro da Secretaria de Informação e Comunicação para o Desenvolvimento, analisa as dificuldades para implementar as mudanças no Paraguai: a herança ainda vigente da ditadura, o obstrucionismo dos partidos tradicionais, o clientelismo, o papel dos meios de comunicação. A entrevista é de Washington Uranga, publicada no jornal argentino Página 12, de 31 de maio último. A tradução é do Cepat.

Augusto dos Santos (49 anos) é jornalista e sempre se pensou em si mesmo dentro dessa tarefa, longe de imaginar que lhe caberia, um dia, desempenhar a função de secretário de Informação e Comunicação para o Desenvolvimento, uma carteira com status ministerial criada pelo Fernando Lugo ao chegar à presidência do Paraguai.

Católico como Lugo, conhece o atual presidente por ter compartilhado com ele espaços eclesiásticos desde a mesma trincheira. Dos Santos é um profissional apaixonado pelo rádio e dirigiu várias emissoras, entre elas a poderosa Rádio Cáritas, de Assunção. Fala o guarani com a mesma fluidez que o castelhano. Homem de amplas vinculações na América Latina, trabalhou também como capacitador para a Associação Latino-americana de Educação Radiofônica (ALER) e pode ser definido claramente como um militante da comunicação, em seu país e no continente.

Segue a entrevista.

Como caracteriza a situação política do Paraguai dois anos após a chegada ao poder do presidente Fernando Lugo?

O resultado eleitoral de 20 de abril de 2008 não produz necessariamente uma mudança na cultura da cidadania e dos atores políticos. De fato, há muitas ilusões que hoje puderam ser desfeitas. São ilusões que achavam que o Paraguai mudaria a partir de 21 de abril de 2008. Isto não foi possível porque fomos castigados pelo mesmo tipo de ditadura que outros países viveram, mas, além disso, pela intolerância e o clientelismo político que se projetaram durante 20 anos após a queda da ditadura. A política funcionava exclusivamente através da clientela e produziu o que se pode chamar de 20 anos perdidos da transição democrática. Tecnicamente, a transição está começando agora, 20 anos depois do fim da ditadura. E nestas condições é muito difícil conjugar as expectativas com as possibilidades de mudança.

É o único motivo?

Não. Ao que disse se deve acrescentar a enorme resistência dos setores que detinham o poder. Não somente o poder político – que é o poder menor no Paraguai –, mas o poder de fato: as máfias que controlam todo o sistema de contrabando, que manejam esta prodigiosa indústria da falsificação; a máfia dos cigarros que levam fumaça a todos os países vizinhos; a máfia das drogas. Esses são vários cartéis que durante muito tempo sustentaram uma forma de construção política e que agora veem seus negócios seriamente em perigo por um processo que pretende tornar a gestão mais decente.

E a terceira coisa que é inevitável mencionar, são os nossos próprios erros. Somos um governo conformado por um projeto político absolutamente heterogêneo, partidos que se encontraram no caminho e que disseram “façamos a mudança política”. Mas, além disso, as pessoas que se encontram neste momento na gestão provêm, em sua grande maioria, de organizações não governamentais e outros empreendimentos desse tipo, e ainda demoram para entrar em sintonia, não com a gestão, mas com essa enciclopédia de vícios burocráticos semeados pelo processo anterior.

Vendo de fora, dá a sensação de que o governo de Fernando Lugo “está cercado”.

É. A única mudança que se pode produzir na função pública é nas ilhas dos postos de confiança. Temos uma legislação que impede outro tipo de mudanças. Em grande medida a função pública responde politicamente ao partido que já não está no governo, porque os funcionários públicos se alinham com esses políticos. De qualquer maneira, nossa decisão é respeitar a dignidade de todos os funcionários e tratar de consensuar um projeto de gestão pública que seja coerente com a mudança.

E a relação com o Parlamento?

É outro elemento que produz essa sensação de captura do Poder Executivo. Um Parlamento adverso, eminentemente obstrucionista, com algumas situações aleivosas como o caso da obstrução para a nomeação de Embaixadores. Eu não descarto erros nossos, mas o mais difícil neste momento é construir o consenso com o Parlamento. Há uma posição obstrucionista e, em alguns atores, existe claramente um interesse destituinte. Também não se conseguiu uma mesa de diálogo capaz de construir uma agenda de prioridades.

E na cidadania?

O panorama é totalmente diferente e absolutamente esperançador. As organizações sociais querem coordenar ações e seguem firmes as esperanças de que suas expectativas sejam cobertas pelo governo que, por sua vez, quer manter uma interlocução direta com a cidadania. Este é também um aspecto em discussão. Ultimamente, houve algumas mobilizações por parte dos governadores, solicitando que sua intermediação fosse mais visível. Muitos destes governadores respondem ao Partido Colorado. O governo responde que não se deverá confrontar a institucionalidade, mas que ao mesmo tempo não vai renunciar à sua experiência de diálogo direto com os cidadãos. É a única garantia que temos de sustentar um processo de mudança.

Em setores simpáticos ao governo se fala muito de democracia participativa. Também se conhecem as resistências de dirigentes políticos da oposição, que assinalam que se tenta suplantar a democracia representativa.

A Constituição fala da democracia participativa. A perversão semântica está em festa no Paraguai. As questões que são normais e obvias em qualquer lugar do mundo aqui são submetidas a tremendas discussões. Satanizou-se a democracia participativa e a menor intenção de discutir o tratamento informativo dos meios de comunicação; a vontade do governo de construir projetos sociais é taxada como suspeita de estar carregada de ideologias. Imagina que o Gabinete Social não teve orçamento do Parlamento e lhe cortaram todos os recursos, não tem um guarani para investir na luta contra a pobreza. Que país estamos discutindo? Há um hemisfério que trata de manter o país que existia, ao passo que o outro não deixa de brigar por um processo de mudança e que não vai desistir antes de alcançá-lo.

Em meio a esta situação, quais são as conquistas que se pode ver nestes dois anos?

Construímos uma estrutura institucional, uma estação de decolagem. Unimos em um corpus um arquipélago de instituições que funcionavam em diferentes âmbitos, apontavam em todas as direções e não tinham nenhum tipo de coordenação. Na área social, com um Gabinete Social que funciona e na área da comunicação também. A luta contra a corrupção não pode ser apenas policialesca, porque só com repressão a corrupção seria reprimida e reconstituída permanentemente. Para eliminar a corrupção é preciso construir uma institucionalidade consistente. Neste caso se está trabalhando com bastante êxito.

Por outro lado, se está construindo a rede social. Em dois anos este governo já percorreu três vezes todo o país, passou em todas as capitais departamentais e tomou contato com as autoridades e com as redes sociais. Já está instalada uma rede capilar do processo. Falta um passo muito mais decisivo: que isso comece a funcionar. E não está funcionando simplesmente porque o Parlamento se encarregou de nos afogar em termos de recursos.

O que se conseguiu em termos de gestão?

Se avançou em obras e tarefas emblemáticas como o caso da reivindicação da Itaipu. A hidrelétrica tem 35 anos e nenhum governo quis discutir com o Brasil a reivindicação paraguaia de um trato justo em relação com a imensa riqueza que esse empreendimento binacional produz. De forma inédita, no dia 20 de julho do ano passado se instalou uma mesa de discussão e os presidentes dos dois países já estão dando testemunho dos avanços a este respeito. Essa foi uma bandeira muito forte do governo.

O outro assunto no qual ainda não se pode dar passos mais transcendentais, mas para o qual já há um plano, é a reforma agrária. Este país tem uma distribuição injustíssima da terra. Parece uma discussão do século XIX, mas continua atual. Definiu-se também uma estrutura que tem que funcionar. Em termos sociais, os planos de ajuda condicionada, que durante os governos anteriores chegavam apenas a 13.000 famílias, se estenderam paulatinamente a 100.000 famílias e para o fim do ano estaremos chegando a 200.000 famílias. Pela primeira vez na história do Paraguai se declarou a gratuidade da saúde, o que aconteceu em dezembro de 2008. Isso demonstra como os recursos eram definitivamente dilapidados em vez de serem aplicados em questões tão simples como garantir a saúde universal.

E as questões pendentes...?

São muitas. Fundamentalmente construir uma resposta apesar das obstruções. Este governo tem a pendência da necessidade de ter um plano A, em base à possibilidade de um consenso político, e um plano B, que, sem gerar turbulência alguma na institucionalidade das instituições do Estado, saiba assistir a luta contra a pobreza no marco das piores obstruções que possam existir. Esse é o desafio mais importante. O processo de construção está em marcha e eu creio que estamos em condições de assumir algumas destas alternativas. Reitero: não estamos falando de confrontos institucionais, mas simplesmente de como faríamos para construir um projeto que dê maiores possibilidades aos setores marginalizados sem contar com um devido acompanhamento orçamentário por parte do Parlamento. Estamos recorrendo inclusive à cooperação internacional. E o Paraguai não é um país difícil de mudar; é um país pequeno, de seis milhões de habitantes. É lamentável que não exista um consenso político; é miserável qualquer processo de obstrução; é simplesmente roubar um prato de comida. Mas é preciso conviver com essas questões.

Lendo os jornais e escutando as rádios, as críticas ao governo aparecem em toda parte. Paradoxalmente, no meio desse cenário, se acusou o governo de restringir e limitar a liberdade de expressão.

Não há um único gesto neste sentido. Nós somos uma espécie de prejudicados de Chávez. Digo isto com muito respeito por nossos governos e por nossos países. A mídia utiliza, numa espécie de operação preventiva, o estandarte de Chávez como antítese ou como símbolo de um suposto atentado contra a liberdade de expressão. Eu não julgo a gestão de Chávez a este respeito – estamos sempre em contato fraterno como países –, mas a cantilena na mídia é queChávez nos leva, como se fosse uma espécie de flautista de Hamelin, ao caminho de restringir a liberdade de expressão. Não há nenhuma medida, sequer um único gesto do governo nessa direção desde 15 de agosto de 2008 até hoje. É uma caricatura lamentável que somos obrigados a aguentar também porque acreditamos que no Paraguai ainda necessitamos atravessar um tempo importante de consolidação institucional para poder discutir certas coisas como, por exemplo, o tema da regulação dos meios de comunicação.

Falar de regulação dos meios de comunicação neste momento no Paraguai é submeter a cidadania a um desgaste desnecessário em meio a um debate entre surdos. Enquanto isso, creio que a opção mais importante é a consolidação dos meios de comunicação estatais. Os meios de comunicação públicos no Paraguai podem ser muito mais incidentes que em qualquer outro país do mundo. É um país pequeno, com seis milhões de habitantes, com muita homogeneidade cultural onde os meios de comunicação públicos podem ser muito incidentes uma vez que se consolidarem. Estamos falando de meios de comunicação públicos e não de meios de comunicação do governo.

Chama a atenção a denominação do ministério ao seu encargo, criado nesta gestão: Secretaria de Informação e Comunicação para o Desenvolvimento. Com esse título não existe outro similar em nenhum país latino-americano nem no resto do mundo. Por que esse nome? O que significa? Por que comunicação para o desenvolvimento?

Porque não se pode falar de comunicação pública sem comunicação para o desenvolvimento e menos ainda em sociedades como estas. Eu creio que não incluir a comunicação para o desenvolvimento nas políticas de comunicação do Estado é como admitir que a nossa comunicação é meramente instrumentalista, meramente difusionista. O desenvolvimento não é meramente uma questão de luta contra a pobreza, de melhoria das práticas culturais ou da produção. É apontar para a necessidade de que a mudança cultural se instale na cidadania, é marcar um projeto. Se mencionava o que para alguns pode ser exótico como denominação. Me parece obvio e absolutamente apropriado à mudança que se pretende viver no Paraguai.

Neste momento estamos trabalhando com sete Universidades públicas do interior para a instalação da cátedra da comunicação para o desenvolvimento. Gostaríamos que junto aos comunicadores que trabalham na construção das notícias todos os dias, se produzam também agentes locais de desenvolvimento desde a comunicação, trabalhadores de comunicação que sejam específicos para as cooperativas, as organizações, os ministérios. Este é o objetivo de incluir esta linha.

De que meios de comunicação o governo dispõe?

Praticamente de nenhum. Os processos anteriores desmantelaram e destruíram os meios de comunicação públicos. Ficamos com duas emissoras de rádio. A Rádio Nacional do Paraguai com equipamentos totalmente obsoletos e 43 discos após ter a maior discoteca do Paraguai. A outra é a Rádio de Pilar da qual, em um ano, trocamos o transmissor depois de 50 anos. Estamos por fazer a mesma coisa com a Rádio Nacional. Já não pensamos no passado, acreditamos que o desafio agora é construir meios de comunicação públicos que sejam fortalecidos no compromisso do processo de mudança.

Este é um país que tem 17 províncias ou departamentos. Estamos no processo de instalar 10 rádios públicas entre este e o próximo ano. E o grande sonho é inaugurar, até o dia 14 de maio de 2011, o primeiro canal público de televisão do Paraguai. Tudo está bem encaminhado. Não podemos falhar porque não temos dinheiro para jogar fora. Estamos condenados a não falhar, a que todos os nossos empreendimentos sejam certeiros. O projeto da televisão pública inclui um canal, um sistema satelital e 17 repetidoras em todo o país com pequenos canais locais. Mas, em meio a tudo isso, estamos na exótica iniciativa de transformar os nossos meios de comunicação de governo em meios públicos.

As pessoas começam a ouvir falar sobre meios de comunicação públicos e muitas vezes nos sentimos discutindo com ninguém estas ideias. Mais: muitas vezes nos sentimos discutindo no interior do próprio governo. Como os meios de comunicação de governo serviam exclusivamente para promover os ministros e companhia, mudar esses processos acarreta também enfrentamentos com as culturas de gestão.

É possível?

Não há outra alternativa. A corresponsabilidade na gestão dos meios de comunicação públicos entre o Estado e a sociedade civil é empoderar a cidadania e isto pode ser absolutamente transcendente.

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