SOBRE O JORNALISMO E AS CAPAS QUE “CONTAM TUDO”
A revista IstoÉ antecipou sua edição do fim de semana para quinta-feira, dia 3/3.
Antes de analisar qualquer coisa, o ato de antecipar a circulação da edição impressa só mostra quão difícil é pensar as publicações nos dias de hoje.
Modernos fossem, os editores de IstoÉ podiam ter arrebentado numa edição eletrônica e podiam resguardar a outrora preciosa edição impressa para oferecer a seus leitores uma cobertura espetacular sobre os desdobramentos da crise. Afinal, revistas nasceram para analisar em profundidade os cenários e para explicar o porquê dos fatos.
Mas esse foi só um desacerto editorial. Deixemo-lo de lado.
Na capa da edição, o título “Delcídio conta tudo” e uma foto do senador do PT do Mato Grosso do Sul com ar soturno e a cabeça levemente inclinada para baixo.
A ambição, inconfessa, contudo evidente e descarada, é remeter os mais velhos à histórica capa de Veja “Pedro Collor conta tudo”, de autoria central minha, mas fruto de um amplo e espetacular trabalho de equipe – repórteres, editores, correspondentes e diretores – num formato de redação e de publicação que já não existe mais. Não existe. Mimetizar a força de uma capa por similaridades gráficas é mais que equívoco: é má fé.
O texto de IstoÉ relata o acesso que a repórter teve a um texto que seria parte de uma delação premiada, não homologada, do senador Delcídio Amaral. No rol de denúncias, supostos fatos que serão graves se forem verdadeiros.
Alguns deles:
1) A presidente da República e o ministro da Justiça teriam feito gestões junto ao presidente do Supremo Tribunal Federal numa reunião extrapauta, no Porto, para que Ricardo Lewandowski ajudasse num processo de esvaziamento da Operação Lava-Jato.
2) A presidente da República teria pedido ao líder do governo no Senado, o próprio Delcídio, para que ele confirmasse com um futuro ministro do Superior Tribunal de Justiça se ele concederia habeas corpus aos presidentes de duas empreiteiras – Odebrecht e Andrade Gutierrez – tão logo assumisse a vaga no STJ. E que o presidente do STJ teria auxiliado nessas gestões.
3) Que Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, soubera com todos os detalhes do passo a passo da compra da refinaria da Petrobras em Pasadena (EUA).
4) Que Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia e da Casa Civil, havia articulado com a CPI dos Bingos para que seu nome não fosse tratado lá dentro.
Não vale descer ao rol quilométrico de versões elencadas no papelório divulgado porIstoÉ, mas:
1) Delcídio Amaral nega a delação. Seus advogados, idem. Um dos advogados de Amaral é ex-presidente do STJ, Gilson Dipp, operador do Direito que construiu sólida reputação em Brasília. Eles não foram procurados antes da publicação do texto. Sequer para confirmar ou negar a existência da delação – ou para ajudar a melhorar a “apuração”. Por quê?
2) O presidente do STF, Ricardo Lewandowski, em que pese ter sido “elogiado” na edição de IstoÉ, não foi procurado antes da divulgação da revista. Por que? Deveria ter sido procurado, até para dar detalhes da conversa ocorrida no Porto, em Portugal. Lewandowski negou que tenha ocorrido abordagem não-republicana na conversa entre ele, a presidente e José Eduardo Martins Cardozo.
3) O presidente do STJ também não foi procurado por repórteres de IstoÉ para dizer o que houve naquelas supostas gestões – para melhorar, para tentar derrubar a “apuração”. E até mesmo as reações dele já seriam notícia, em si, numa eventual reportagem.
4) O ministro Marcelo Navarro nega ter existido a conversa citada na suposta delação também negada. E também não foi procurado por repórteres de IstoÉ. Por que? Mesmo que Navarro negasse, havia reportagem se fato houvesse.
5) Regressar à compra de Pasadena, dizendo que Dilma sabia o que se passaria na reunião que levou à efetivação da compra da refinaria nos EUA, é chover no molhado numa obra já feita: a presidente já dissera, em outro momento, que soubera da compra por relatório preliminar – mas que não o lera antes da reunião do Conselho da Petrobras. E isso não é crime, é notícia velha. Por que não citar, em um parágrafo, que ela sabia o que já dissera que sabia?
6) A CPI dos Bingos não tinha rigorosamente nada a ver com Dilma. Nada. Foi ela, a CPI, a responsável por levar à queda de José Dirceu do ministério da Casa Civil. E Dilma assumiu o posto dele. E naquele momento ela não era nada, não era ninguém, no horizonte político nacional. Lula tirou o nome de Dilma da cartola depois da posse para o segundo mandato – e ali a CPI dos Bingos já não existia mais.
7) De resto, no texto da revista há dois parágrafos remetendo à renovação da tese do impeachment que não nasceram da pena jornalística. Saíram de uma mente policialesca. São indícios de digitais.
De volta ao jornalismo e ao trabalho que dá apurar reportagens que fazem, fizeram ou podem fazer História – e para desautorizar a remissão de IstoÉ à capa “Pedro Collor conta tudo”, de Veja.
A entrevista de Pedro Collor a Veja não foi nem o início, nem a bala de prata da crise política que levou ao desfecho do primeiro impeachment da História. Foi apenas o curso de um processo que se iniciara havia mais de um ano no cultivo de uma fonte, no trabalho de convencimento para que falasse o que sabia, na demonstração de independência do veículo (no caso, a revista) em relação ao governo com a publicação de reportagens anteriores que eram evidentemente ruins para o presidente de então (o do irmão de Pedro Collor). Mas no curso daquele processo uma vasta equipe de profissionais da revista colocou a apuração à frente de tudo – tínhamos certeza de que os rios de fatos correriam para o mar da boa apuração. E se deu assim, e não só na Veja. No meio do processo outras publicações deram furos essenciais para o processo – inclusive IstoÉ, com a revelação do motorista Eriberto França.
A entrevista de Pedro Collor a Veja não decorreu da eleição de uma publicação, pelo entrevistado, em detrimento das outras publicações. Longe disso: comecei a me aproximar de Pedro Collor em agosto de 1990, quando entrei em Veja, por orientação e sugestão de editores da revista. Minha área de responsabilidade ia de Alagoas ao Piauí, com base no Recife, e Pedro era a principal fonte próxima do poder federal nessa área. Por mais de um ano mantive uma rotina de ir a Maceió quase semanalmente com um único objetivo: consolidar a fonte. Isso era estratégia de jornalista, e empresas jornalísticas ousavam fazer esses investimentos.
Cultivar fontes é uma arte. É uma costura. Eu era um aprendiz naquele ofício, em 1990, mas vinha de uma escola em que aprendíamos a amadurecer à base de carbureto e a publicação para a qual trabalhava me dava todas as ferramentas para fazê-lo.
A Polícia Federal daquela época existia para servir à Presidência, era um desvio colateral cultivado, ainda, pela ditadura militar da qual havíamos saído apenas em 1985.
O Ministério Público engatinhava – tinha sido criado pela Constituição de 1988 e fora montado a partir de uma costela do Palácio do Planalto com procuradores egressos de uma carreira em que investigar não era hábito.
A entrevista de Pedro Collor a Veja não foi a primeira reportagem do processo que incendiou o país e levou à cassação do presidente. Foi a quarta reportagem – e depois dela se deu todo um processo político e investigativo, no Congresso e por meio das instituições, catalisado por movimentos populares, que conferiu legitimidade a tudo.
Antes da capa “Pedro Collor conta tudo” a Veja havia publicado uma reportagem com o próprio irmão do presidente sugerindo acusações mais graves, mas voltando atrás em muitas delas. A notícia era o desentendimento dentro da família presidencial. Algumas semanas depois, escorado em documentos passados por Pedro Collor, mas fruto de apurações também, de confirmações, e de uma antológica conversa que mantive com Paulo César Farias na suíte que ele ocupava num hotel de luxo em São Paulo (em que ele negou todos os papeis que tínhamos em mãos, mas em que ouviu do diretor de redação no ato que iríamos publicar a reportagem porque sabíamos que ele mentia em razão do comportamento que adotava na conversa interpessoal), fizemos a primeira grande reportagem sobre o tema. E não havia entrevista de Pedro até ali. Na semana seguinte, e com 40% da equipe de Veja mobilizada para apurar, confirmar, desmentir e melhorar as informações que obtínhamos na revista, Veja publicou a capa com o imposto de renda de PC mostrando que ele enriquecera no governo do amigo Collor. Naquele momento já tínhamos a entrevista com Pedro – mas ela não estava gravada e a direção de Veja se recusava a dar uma entrevista daquele teor contra o presidente sem gravação. Recebi a missão de voltar a Pedro Collor e a seguir insistindo com que gravasse, o que só consegui na semana seguinte. Ainda assim, as principais acusações de Pedro ao irmão Fernando Collor foram publicadas com apurações e outras versões – as oficiais – ao lado. Havia apuração. E não havia nem MP nem PF entregando papelório à noite e participando do processo – fazendo com que a apuração se escorasse em vazamentos. Havia apuração.
Por que um veículo de comunicação sai correndo para publicar, sem ouvir outros lados, o que recebe na calada da noite?
É claro que erros são cometidos no calor de um processo de apuração. Somos todos passíveis de errar. Somos passíveis, também, de ver jornalistas sendo usados em meio a processos políticos. Frank Underwood, em House of Cards, retrata isso bem quando se torna amante de uma das principais repórteres de Washington. Ali é ficção, mas baseada em fatos reais. Quando isso ocorre, diz-se que um veículo, ou um repórter, está sendo “operado” pelo detentor do “fato” ou do suposto fato. Será que isso ocorreu?
Por fim, o mais estranho em todo esse processo foi a eleição de IstoÉ para ser o veículo da vez. A revista é a terceira em circulação no país e tem importância secundária, hoje, no processo político. A ressurreição da publicação – mesmo que num fatídico beijo da morte caso tudo se prove uma barriga monumental – se dá justo na véspera da troca de comando em Veja (na próxima segunda-feira um jornalista de carreira equilibrada, de texto primoroso e de responsabilidade ética assume a direção de redação da publicação da Abril, e isso suscitou um debate paralelo nas redes sociais em relação a um suposto e improvável “enquadramento” de Veja pelo governo). Por que os vazadores da suposta delação negada de Delcídio Amaral elegeram IstoÉ para entregar um papelório potencialmente bombástico?
Para reflexão: para alguns, “perder” a adesão de Veja à tese cataclísmica do impeachment seria como a derrota do general Von Hommel no norte da África por parte do Exército Nazista. Sem o norte da África os delírios totalitários de Hitler foram se enfraquecendo, a demora em dobrar a União Soviética na frente russa pesou e as duas derrotas juntas auxiliaram ao cenário conjuntural que permitiu aos aliados desembarcarem na Normandia. A analogia pode ser transposta para a cena política do Brasil de hoje. E o regresso (até aqui, imaginado, possível, provável) de Veja a uma linha mais sensata e fundada em apurações de fato, pode estar sendo lido por alguém como a derrota das divisões Panzer no Saara. Será que o governo ainda é capaz de reunir três nomes de Estado numa Conferência de Casablanca? Em meio à guerra, Roosevelt, Stalin e Churchill, sob a assessoria de De Gaulle, reuniram-se no Marrocos. E nós? Temos ainda uma Casablanca?
Ao longo dos anos afastei-me das redações, sobretudo da Veja, do jornalismo e até do dia a dia do noticiário político de Brasília. Mas, ao ver a tentativa de mimetização farsesca da capa de Veja de 25 de maio de 1992 com essa da IstoÉ de hoje, senti-me obrigado a expor as diferenças entre um mundo e outro, entre um Brasil e outro, entre uma conjuntura e outra, para animar o debate.
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terça-feira, 8 de março de 2016
Os furos da delação de Delcídio inventada pela QuantoÉ, ops, IstoÉ
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