sexta-feira, 4 de março de 2011

Quem fiscaliza o Tribunal de Contas?

A fachada da sede do TCU em Brasília. A conduta de alguns ministros do Tribunal está sob questionamento. Criado para auxiliar o Congresso Nacional na fiscalização dos gastos do governo e na conduta administrativa de autoridades, o Tribunal de Contas da União (TCU) é um poderoso guardião do dinheiro público. Diariamente seus auditores examinam contratos de grande valor firmados pela União. Os procedimentos podem levar a processos, julgados por uma corte de nove ministros titulares e quatro substitutos. As decisões dessa corte podem paralisar grandes obras, suspender contratos e punir autoridades. Graças a esse trabalho conjunto todos os anos o TCU evita a perda de bilhões de reais de dinheiro público. Para manter a legitimidade dessa função, o TCU deve pairar acima de suspeitas que manchem sua credibilidade.
Nas últimas semanas, no entanto, essa imagem foi abalada pela conduta de alguns de seus integrantes e da administração do Tribunal. Tornou-se público que ministros da corte receberam dinheiro para fazer palestras em órgãos de governo vigiados pelo TCU, costumam viajar nos fins de semana com passagens pagas com dinheiro público e têm parentes com empregos na máquina pública incondizentes com o papel de fiscalização do Tribunal. É o caso de Maria Lenir, mulher do presidente do TCU, Benjamin Zymler, que havia sido nomeada para a liderança do Partido da República (PR) no Senado. O PR comanda o Ministério dos Transportes, um dos órgãos mais enrolados em processos no TCU. Depois que o caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Zymler disse que a mulher, funcionária do Senado, não assumirá o cargo.
Como ocorre no Judiciário, os ministros do TCU devem se declarar “impedidos” de julgar processos em que eles têm interesse ou em que familiares, amigos íntimos ou inimigos figurem como partes. Quando algum fato possa levantar dúvidas sobre a lisura de um julgamento, apesar de não haver imposição legal, eles também podem se declarar “suspeitos” e assim se abster de votar em determinados processos. Essa é uma atitude prudente e recomendável, que deve ser adotada para evitar suspeições sobre suas decisões. Época apurou que tal cautela não foi seguida em julgamentos recentes.
O ministro Walton Alencar relata sete processos que envolvem o ex-ministro do Turismo Walfrido dos Mares Guia. Embora um sobrinho de Walfrido, Frederico dos Mares Guia, ocupe cargo de confiança em seu gabinete, Alencar não viu problema s em aceitar argumentos apresentados por Walfrido para justificar supostas irregularidades em convênios no Turismo. Na decisão, tomada em janeiro, Alencar disse que o problema “não ensejou dano grave ao interesse público”. O voto de Alencar foi aprovado, e Walfrido não foi punido. Walfrido disse a Época que não procurou Alencar ou qualquer pessoa do gabinete para tratar do assunto. Por meio da assessoria de imprensa, Alencar disse que, em seu ponto de vista, o fato de o sobrinho do ex-ministro trabalhar em seu gabinete não é um impedimento para ele julgar os processos de Mares Guia.
Ex-senador pelo DEM, o ministro José Jorge diz que também não sofreu embaraços ao relatar no ano passado um processo contra a senadora Kátia Abreu (DEM-TO). Ela foi acusada pelo Ministério Público de ocupar indevidamente o cargo remunerado de presidente do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), no Tocantins, ao mesmo tempo que cumpria mandato de deputada federal. Além de ter sido colega de partido, Kátia trabalhou para que Jorge fosse indicado pelo Senado para o TCU. Em seu voto, Jorge livrou Kátia Abreu. Em nota, Jorge afirmou ter relações pessoais com quase todos os parlamentares, políticos e empresários. “Se ele (Jorge) se declarar impedido em todo processo de interesse de conhecido seu, não participará de um grande número de julgamentos”, diz a nota.
Uma situação similar ocorreu com o ministro José Múcio Monteiro. Ele relatou um processo em que um ex-colega de PTB, Luiz Piauhylino, atuou como advogado de empresas responsáveis por uma obra no Rio Madeira, em Rondônia. Segundo a auditoria do TCU, as empresas praticaram sobrepreço e receberam recursos do Ministério dos Transportes fora do prazo. Embora tenha rejeitado argumentos de Piauhylino, Múcio votou pela continuidade da obra e dos pagamentos, decisão que acabou aprovada pelos outros ministros. Em nota, Múcio comentou os pedidos de Piauhylino negados pelo Tribunal, mas ignorou sua decisão de permitir a continuidade da obra. Piauhylino disse que mantém relação civilizada com Múcio, mas que as vidas profissionais são independentes. “Nesse processo saí derrotado”, disse.
Ministros do TCU durante julgamento. O Tribunal contratou serviços de comunicação sem licitação, apesar de recomendar o contrário ao governo federal Se quiser, José Múcio ainda poderá se declarar impedido em um processo que investiga um acordo entre a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e quatro sindicatos de usineiros, revelado por Época em 2009, no valor de R$ 178 milhões. Além de já ter atuado como diretor de empresas do setor sucroalcooleiro, em que sua família mantém negócios, Múcio tem parentesco com os donos de uma das usinas beneficiadas pelo acordo firmado pela ANP. Há um ano com o processo, Múcio não decidiu se vai se considerar impedido.
Outro caso com potencial conflito de interesses está nas mãos do ministro Augusto Sherman. Ele examina um processo em que a empresa FSB Comunicações é acusada de ter sido favorecida em uma licitação no Ministério do Esporte. Em fevereiro do ano passado, a FSB ganhou um contrato de R$ 260 mil com o Instituto Serzedello Corrêa, ligado ao TCU, para dar um treinamento para “identificação de fatores de risco, contenção de dinâmicas adversas e gerenciamento de crise impactantes para a imagem institucional”. Na ocasião da contratação, o TCU era alvo de críticas do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, insatisfeito com a paralisação de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pelo Tribunal. Uma das orientações recorrentes do Tribunal é para que os órgãos públicos contratem serviços por meio de licitação. Por analogia, o TCU deveria fazer o mesmo, pois existem várias empresas que prestam o mesmo tipo de serviço feito pela FSB. Em seu caso, o TCU não seguiu o procedimento recomendado por ele próprio e fez a contratação sem licitação.
Dois projetos em tramitação no Congresso preveem a criação de um órgão de controle externo destinado a fiscalizar os Tribunais de Contas no país. Eles criam uma instância com funções semelhantes às exercidas no Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com poder de investigar desvios de conduta dos integrantes desses Tribunais. Apesar de o TCU estar vinculado ao Congresso Nacional e ter uma corregedoria interna, os atos de seus ministros, na prática, estão submetidos a uma fiscalização praticamente inexistente. Se um conselho nacional dos Tribunais de Contas existisse, possivelmente os ministros do TCU se tornariam mais zelosos em suas condutas. Esse é um aprimoramento institucional que deve ser estimulado para preservar a autoridade do TCU e sua capacidade de resguardar o dinheiro público.

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