terça-feira, 29 de março de 2011

Voto obrigatório x voto facultativo

Uma observação preliminar, de natureza vernacular, cabe ser feita na polêmica relativa ao voto dito obrigatório vis a vis o voto facultativo: de fato, a obrigação legal é a do cidadão fazer o seu alistamento eleitoral e, pois, fazer-se presente na seção de votação ou no órgão do TRE destinado à justificação de sua eventual ausência. Ninguém é obrigado a votar num candidato ou num Partido; ao eleitor é facultado anular seu voto ou abster-se de votar (voto em branco) ou mesmo não comparecer à seção eleitoral. Assim, a obrigatoriedade legal afeta apenas o eventual “incômodo” do eleitor ao se deslocar de sua residência até a seção eleitoral ou ao referido órgão do TRE, mas não retira do cidadão a livre opção de não exercer seu direito de votar (ou seja, de expressar a sua vontade ou opinião). Neste sentido, o voto é sempre facultativo; alistar-se como eleitor é que é obrigatório.

Adentrando agora o mérito da questão, há que ser muito ressaltado um fato político de extraordinária relevância: graças sobretudo ao voto “obrigatório”, o Brasil tornou-se uma das três mais massivas e participativas democracias do mundo. Somos cerca de 120 milhões de eleitores votantes, exercendo um protagonismo político muito mais expressivo que o das tradicionais democracias européias e dos EUA (em 2010, no 1° turno, tivemos aqui 18% de ausentes, quando nas nações democráticas referidas, onde o voto é facultativo, tal índice quase nunca é inferior a 35%).

Tão exuberante movimento histórico de afirmação da cidadania, veio se ampliando ao longo de décadas graças também a reformas políticas que facultaram o voto aos analfabetos e aos jovens de 16 e 17 anos. Tal grandiosa mobilização política originou-se no pós Estado Novo, ocorrendo num período de grande desenvolvimento da industrialização e urbanização em nosso país, mas que teve como poderosas alavancas as Reformas Políticas implementadas pela Constituinte de 1946 – e felizmente mantidas pela Constituinte de 1988 – que introduziram a exigência legal de configuração nacional dos partidos políticos (não mais se adotando o modelo de partidos estaduais da República Velha), a votação proporcional para deputados (com a conseqüente proliferação partidária) e, especialmente, consolidaram o instituto do VOTO “OBRIGATÓRIO”. A combinação dessas três exigências legais, somadas mais recentemente às importantíssimas Reformas Políticas que estabeleceram o Horário Eleitoral “Gratuito” para rádios e TVs e o Fundo Partidário, induziram, de um lado, a implantação de várias organizações partidárias em todos os rincões de nosso Brasil, estimulando assim a competitividade eleitoral em cada município brasileiro, e, de outro lado, via disseminação por uma mídia de âmbito nacional de uma ampla gama de informações – frequentemente distorcidas -, inclusive de caráter político, propiciaram, bem ou mal, que temáticas políticas se fizessem cada vez mais presentes junto à cidadania brasileira. Também a periodização do calendário eleitoral, com eleições a cada 2 anos, ao viabilizar a reciclagem a miude de nossa representação política, muito tem contribuído para a crescente politização da sociedade brasileira, do que são testemunhas os resultados das 3 últimas eleições presidenciais e o crescimento dos partidos de centro-esquerda no Congresso Nacional.

Como conseqüência deste contexto tão dinâmico quanto politizador, temos assistido a um processo sistemático de enfraquecimento progressivo do coronelismo político, do que são comprovações as sucessivas derrotas dos oligarcas remanescentes no Norte/Nordeste brasileiro para forças de centro-esquerda nos principais Estados destas regiões (a sobrevida da dinastia Sarney, quase derrotada, é uma exceção que confirma a regra). Como diz o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos: “... aponto a conexão mais relevante entre voto (alistamento) obrigatório e democratização. (...). A criação de gigantesco mercado de votos foi acompanhada por crescente competitividade, o que implica, no caso, redução do poder do mandonismo local. Esse tem sido o resultado histórico mais importante da obrigatoriedade do voto”.

Devem ser agora examinados os dois principais argumentos esgrimidos pelos defensores do voto facultativo, e que são, como procurarei mostrar, expressões de uma visão individualista e elitista da cidadania política.

O primeiro argumento, de cunho individualista, está centrado no alegado respeito à “liberdade e direitos individuais”. Segundo esta visão, o voto facultativo seria mais “democrático” por resguardar o “direito individual de optar livremente por não votar”. Já o voto obrigatório seria “antidemocrático”, por “autoritário”, ao negligenciar o direito à “livre opção” das pessoas.

Os que assim pensam ignoram que ser verdadeiramente um cidadão implica não apenas ter a consciência de ser possuidor de direitos individuais, mas também ser consciente de que se é igualmente portador de deveres cívicos e sociais. Isto é tão mais verdadeiro para aqueles que tenham uma formação democrática e de esquerda, segundo a qual os interesses do bem comum devem se sobrepor aos interesses individuais. Como a participação políco-eleitoral é um bem para a nossa nação e importantíssima para o aprimoramento de nossa sociedade, penso que a obrigatoriedade de alistar-se junto à Justiça Eleitoral é um dever cívico que cada cidadão há de ter que exercitar; isto nada tem a ver com “autoritarismo”.

Afinal, será que cabe entender-se como “antidemocrática” - e não como dever cívico – a obrigatoriedade legal que todo cidadão tem de prestar contas anualmente à Receita Federal daquilo que deverá pagar (ou não) de impostos ao Estado? Seria lícito, em nome da liberdade individual, alguém recusar-se a cumprir tal exigência legal? Será que cabe entender-se como “autoritária” – e não como um dever social – a vacinação obrigatória? (A lembrar: em 1904, ao combater a epidemia de febre amarela no Rio, Osvaldo Cruz enfrentou violentíssimas críticas pela imprensa e manifestações de rua, ao estabelecer, por lei, a vacinação obrigatória, que estaria “ferindo o direito à livre opção das pessoas de quererem se vacinar ou não”). Será que é “atentatória à liberdade individual” a norma constitucional que obriga os pais a matricularem seus filhos numa escola? Será “antidemocrática” – e não um dever cívico para com a nação – a obrigatoriedade legal de todo homem fazer seu alistamento militar (o que não significa que necessariamente terá que prestar o serviço militar), fato este tão comum em tantas democracias de nosso planeta? Enfim, se uma pessoa se recusa a sequer justificar perante o Estado a razão pela qual não cumpriu um dever de cidadania, é justo que o Estado não lhe confira alguns direitos como, por exemplo, o de fazer concurso público.

O segundo tipo de argumento, de cunho elitista, que é reverberado pelos defensores do voto facultativo, é o de que este, sendo uma opção voluntária do cidadão, expressaria um posicionamento político “mais consciente”, sendo então um voto, em princípio, de qualidade superior ao do voto “compulsório”.

O elitismo desta visão é claro; pressupõe que o “povão” – que tenderia, por várias razões ecenômico-sociais, engrossar o contingente dos abstinentes eleitorais – “não sabe votar”, seria “mais manipulável”, mais sujeito à “compra de votos”, etc. Primeiramente, por esta visão, os resultados da disputa Dilma x Serra significariam que o Sul/Sudeste, dito mais “esclarecido e consciente” , teria um voto mais qualificado que o “atrasado e inculto” Norte/Nordeste, sendo pois o eleitorado tucano mais politizado que o petista. Grande balela... A propósito, deve ser sempre lembrado que nos anos 30, foi na cultíssima Alemanha do voto facultativo, que o “esclarecido e consciente (??)” eleitorado alemão fez Hitler 1° Ministro. Ademais, pesquisas acadêmicas atestam o elitismo da proposta de voto facultativo.

A cientista política Rachel Meneguello afirma: “Em um cenário de voto voluntário, há uma tendência pequena que beneficia os candidatos mais conservadores,(...). Desses mesmos estudos que mostram a alta participação depreende-se que, em geral, os eleitores mais propensos a votar de forma voluntária são os que têm maior renda familiar (quatro salários mínimos ou mais), maior escolaridade e são mais velhos, com mais de 45 anos.(...). Sendo assim, em uma sociedade desigual como a brasileira, cabe espaço para supor que fazer votar estimula a inclusão de segmentos marginalizados, no sentido de definir governos e seu funcionamento”.

Por isso, o voto facultativo teria um efeito perverso no que tange a já tão injusta distribuição de renda em nosso país. Isto porque, sendo o voto “obrigatório”, o maior contingente eleitoral é formado pelo “povão” mais carente; assim, em geral por cálculos eleitorais, os governantes se sentem estimulados a investirem também em políticas públicas nas áreas e setores sociais mais despossuídos. Daí o porquê do povo pobre gostar tanto de eleição. Ele sabe que ano eleitoral é tempo de obras e serviços nas comunidades. Já com o voto facultativo, sendo a maioria do eleitorado tendencialmente de “classe média” mais escolarizada e de mais posses, os governantes, também por interesses eleitorais, seriam induzidos a priorizarem ainda mais estes segmentos sociais já mais bem aquinhoados, relegando a um ostracismo político ainda maior os setores populares marginalizados, agravando sobremaneira as desigualdades sociais no Brasil.

Outrossim, há que ser ressaltado que, com o voto facultativo, seria muito amplificada a influência do poder econômico, seja junto a setores populacionais mais vulneráveis economicamente, seja junto aos segmentos empresariais com os quais o candidato interlocuta. Afinal, é mais simples e factível serem escolhidos nichos eleitorais mais restritos e afins com um candidato que, para “convencer” pessoas previamente “mapeadas” a se disporem a votar, poderá oferecer “benefícios” ao potencial eleitor – compra do voto ou transporte no dia da eleição ou promessa de emprego ou assistencialismo fisiológico ou compromissos de “serviços” empresariais pós-eleição -, o que dar-se-ia com mais facilidade e maior peso do que num universo eleitoral muito mais amplo e diversificado, onde o peso relativo de tais práticas fica mais diluído.

Por fim, um registro historicamente significativo: na quase totalidade dos países que adotam o voto “obrigatório”, a estabilidade democrática é a tônica. Assim é que, há décadas, Austrália, Itália, Bélgica, Costa Rica (esta sendo um caso ímpar de estabilidade política dentre as nações latinoamericanas) vem demonstrando o quanto a obrigatoriedade do voto contribui para o aprofundamento da democracia – o que não significa que se possa pensar que o voto “obrigatório”, por si só, impeça a desestabilização democrática de um país (o Brasil é um exemplo disto). Ou seja, ajuda a inibir golpes antidemocráticos, mas pode não impedir.

Por todos estes motivos, julgo que uma eventual aprovação do voto facultativo na Reforma Política hoje em pauta, significaria um trágico golpe na democracia brasileira. Espero que os parlamentares democráticos e progressistas, comprometidos com os interesses maiores do povo trabalhador brasileiro, não permitam a viabilização deste enorme retrocesso político.

Godofredo Pinto

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