sexta-feira, 4 de março de 2011
Sobre cordas e fogueiras
(Giotto, detalhe do inferno do afresco na Cappella degli Scrovegni)
Esclarecendo para quem estava distraído: o sociólogo Emir Sader, indicado para dirigir a Casa Rui Barbosa, concedeu longa entrevista à Folha de São Paulo no último domingo. A Folha, numa postura nada surpreendente, usou a entrevista para atacar Sader por todos os flancos.
Foi, no entanto, o próprio Sader quem forneceu a corda com que a Folha lhe iria enforcar. Lá pelas tantas da entrevista, Sader diz que a ministra é "meio autista". Não dá nem para culpar o jornal por publicar isso na capa. Todo mundo gosta de um bafão.
Sader tentou se explicar, dizendo que não foi bem assim, que sua fala havia sido distorcida. A Folha logo disponibilizou o áudio da entrevista. O sociólogo chamou mesmo a ministra de "autista" e os agentes que recebem recursos para os pontos digitais de "merdinhas". A impressão que temos, ao escutar o áudio, é que Emir Sader foi de uma ingenuidade inacreditável. Ele deu uma entrevista ao jornal de maior circulação do país, um jornal que tem se notabilizado por uma linha editorial extremamente agressiva em relação ao governo, como se estivesse num boteco papeando com um amigo de confiança.
Os erros de Sader foram vários:
Falou demais, demonstrando deslumbramento, com o cargo e com a entrevista. Ouvindo ou lendo a entrevista, parece que Sader é que será o ministro da Cultura. Sader poderia esperar, como vinha fazendo até então, assumir a Casa, para conhecer melhor seus funcionários, conversar com eles, para aí sim dar uma entrevista falando o que iria fazer. Afinal, a Casa Rui Barbosa não é uma província persa que Xerxes entrega para um primo fazer o que bem entender. Há que ser minimamente democrático, ouvir as pessoas ali dentro.
As críticas que ele faz aos pontos de cultura são procedentes. Representantes da própria UNE, que inventou os pontos de cultura, já notaram que a situação ficou insustentável. O governo, por conta de exigências do Tribunal de Contas, requer uma burocracia de prestação de contas muito além da capacidade dos pontos. A verba é muita pequena, de 15 mil reais, por um período de um ou dois anos, que é distribuída em geral para um grupo grande de pessoas. Quando chega o momento de prestar contas, o dinheiro acabou há tempos e ninguém tem conhecimento, capacidade ou recursos para fazê-las. Entretanto, Sader adotou uma linguagem imperdoavelmente chula para quem pretendia gerir uma instituição cultural ao se referir aos agentes dos pontos de cultura como "merdinhas". Se a Ana dissesse um negócio desses...
Agrediu a sua própria chefe. Não dá para entender o que se passou pela cabeça de Sader para chamar Ana de Hollanda de "autista" numa entrevista para o maior jornal do país. Ingenuidade?
Ao cabo, a não nomeação de Sader parece ter sido o melhor para todos. Sader pode continuar exercendo seu ofício, como professor da UERJ, blogueiro da Carta Maior e combativo militante de esquerda. Dirigir uma fundação de perfil discreto, voltada para pesquisas literárias sem nenhum apelo político, não seria interessante para o sociólogo.
Essa história, embora uma coisa não tenha nada a ver com a outra, acendeu a polêmica em torno da ministra da Cultura, Ana de Hollanda, cuja nomeação desagradou profundamente um grupo muito bem articulado da militância digital. O debate tem sido bem acalorado numa lista de discussão de que participo; eu diria que até demais, com gente aderindo a uma campanha agressiva contra a ministra, como se ela reunisse todos os vícios do mundo. Não sei, talvez ela realmente seja uma pessoa má ou incompetente ou reacionária e represente um retrocesso terrível para a política cultural brasileira, mas eu preciso de um pouquinho mais de tempo para ter certeza disso, e quero ter certeza antes de acusá-la. Quero ver o que ela fará para fomentar a literatura, o cinema, a música, afora outras formas não-individuais de cultura. Quero ver efetivamente o que ela vai fazer, em vez de ficar desesperado porque ela nomeou a namorada do primo do cunhado de um cara que prestou serviços para o Ecad em 1987. Quanto às políticas públicas de cultura digital e legislação da propriedade intelectual, acho que são assuntos pertinentes ao Congresso Nacional e a Presidência da República, pois implicam uma responsabilidade grande demais para ficar nas mãos do ministro da Cultura. São temas que devem ser debatidos ampla e democraticamente pela sociedade brasileira, sem pressa, sem desespero, sem palavras de ordem.
E mesmo que eu chegue à conclusão que Ana de Hollanda é uma péssima ministra, continuarei tratando-a com respeito. Eu tratei com respeito até o Indio da Costa, porque diabos não vou respeitar Ana de Hollanda? (Tá certo, já faltei com respeito a alguns colunistas do Globo, mas francamente eu me arrependo disso; quero ser mais fino a partir de agora). Se eu concluir que ela é nociva ao Brasil, espero escrever vigorosamente contra ela, mas com educação, procurando não atacá-la pessoalmente nem ofender sua honra, ao contrário do que muitos estão fazendo agora.
Sobre o tal Ecad, sempre ouvi falar mal dele, tanto que formei uma opinião leiga "contra" o órgão, mas sei que uma parte da classe artística, incluindo inúmeros músicos que eu reverencio, também o defende. Não adianta, portanto, discutir com nervosismo. A luta política deve ser conduzida serenamente.
Ai aparece fulano e diz que Reinaldo Azevedo defende a ministra, usando isso como argumento para sermos contra ela. Ora, esse é um argumento absurdo. Se o Tio Rei disser que gosta de Beethoven, eu vou parar de ouvir música clássica? Eu sempre escrevi de maneira muito contudente contra os desmandos dos grandes grupos de comunicação, mas me preocupa ver surgir um "antimidiatismo" pirracento, infantil, que só desprestigia a crítica séria e estudiosa que fazemos à mídia brasileira.
Ninguém é dono da verdade, ninguém é melhor que ninguém, ninguém é santo e ninguém é diabo. A questão dos direitos autorais não é ponto pacífico. Ainda há muita obscuridade nesta seara. Eu sou (ou pelo menos, tento ser, ou acredito ser) um militante pela liberdade na internet. Nunca usei o tal Creative Commons em meus blogs porque, para mim, sempre foi óbvio que qualquer um poderia copiar meus textos, desde que informe a fonte, naturalmente. Mas entendo que é preciso haver uma legislação adequada. Não tenho informação suficiente, porém, para dizer que o melhor para a liberdade é isto ou aquilo.
No futuro, imagino eu, quando houver uma governança global efetiva, teremos leis que regulamentarão a propriedade intelectual em todo planeta. Mas a liberdade na rede não será conquistada com paternalismo governamental. É algo que devemos construir dentro da sociedade civil, produzindo uma literatura política de liberdade, assim como fez Voltaire. Sei que os militantes digitais devem estar cansados de participar e realizar conferências sobre o tema, o que explicaria a sua irritação (de alguns, ao menos) para com os leigos sempre que pedimos mais informações sobre o assunto antes de aderirmos às suas campanhas; mas esse é o tipo de coisa que não tem fim. A cada ano, surgirão sempre milhões e milhões de novos leigos, curiosos para saber o que raios significa "cultura digital", "creative commons", "AI5 Digital", etc. Eu mesmo ainda não entendo direito nada disso, mas quero entender, visto que pretendo ganhar dinheiro com meus próprios direitos autorais, no campo da literatura, e sou ligado a uma pequena distribuidora de filmes, que se contorce nervosamente tentando, da mesma forma, viver de... direitos autorais.
Tetê Bezarra
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