Antes das ciências sociais a literatura latino-americana tenha sido a primeira a constatar o caráter trágico na América Latina e a normalidade e naturalidade que essa tragédia adquire entre nós. Nos importamos e nos impressionamos com as tragédias dos outros, não com as nossas. Aqui “tudo é normal”, registraram os escritores. Essa normalidade nos conduziu a três condições excepcionais no mundo e sequer as percebemos ou as tratamos com seriedade. A América Latina é a região mais desigual do mundo, a mais violenta do mundo e a que tem o nível mais baixo de confiabilidade interpessoal do mundo. Certamente, as três condições estão relacionadas entre si e a desigualdade é a raiz das outras duas.
Na história da humanidade, as diversas histórias singulares e significativas mostraram que os grandes empreendimentos, as grandes e pequenas lutas pela liberdade, a conquista da glória, formaram acontecimentos que sempre tinham por base relações de confiança, um sentimento de comunidade e de pertencimento fundado numa noção de igualdade. Foi assim entre os cidadãos de Atenas antiga, entre os hebreus que buscaram a terra prometida, entre o popolo romano antigo que conteve os abusos da nobreza, entre os colonos que libertaram os Estados Unidos, entre os citoyens que derrubaram a tirania, entre os camaradas e companheiros que fizeram revoluções, entre os soldados nos campos de batalha entre os trabalhadores modernos que lutaram e lutam pelos seus direitos. Formar uma vontade coletiva e uma organização que reúna os esforços de vários indivíduos isolados é condição para o êxito da luta seja ela econômica, política, ideológica, religiosa, nacional etc. Essa vontade coletiva só se forma se houver confiança interpessoal e nas lideranças.
Sem confiança não há construção comum de qualquer projeto de futuro. A confiança implica que os outros ou as instituições ajam de acordo com o que se espera delas: o governo deve governar com eficácia e produzir o bem comum, a polícia deve proteger o cidadão, o deputado deve representar os interesses dos representados de forma honesta, o partido deve defender causas justas e éticas; o motorista deve parar no sinal vermelho, os fabricantes devem produzir produtos de qualidade e que não prejudiquem o consumidor, o sistema de saúde deve atender os necessitados com zelo e perícia, o vizinho deve ser cordato e solícito, o colega de trabalho deve ser solidário e assim por diante. Sem essas relações de confiança a vida social se torna muito difícil.
Desigualdade e desconfiança na América LatinaO Instituto Latinobarometro, sediado em Santiago do Chile, vem promovendo uma inestimável pesquisa sobre a democracia na América Latina há 20 anos, completados em 2015. Dentre os vários itens pesquisados um é o da “confiança”, tanto na sua dimensão da relação dos indivíduos com as instituições políticas, sociais e privadas, quanto na dimensão das relações pessoais.
Pois bem. As pesquisas do Instituto Latinobarometro mostram que a América Latina não funciona com base em relações de confiança. A violação das leis e das normas, a puxada de tapete, a lei de Gerson, o jeitinho, a fraude social, os atestados falsos, a compra e venda de documentos, o engodo político, a demagogia e a falta de solidariedade, de compromisso e de responsabilidade social são condutas generalizadas na região.
Desconfiança e baixo nível de organização e de participação social são consequências diretas dessa situação. Esses comportamentos não são exceções. A ação visando o melhor proveito pessoal, em detrimento do coletivo ou dos outros é regra. Proveito pessoal, todos querem. Mas o que se trata aqui, segundo o estudo, é do proveito pessoal adicional, obtido pela fraude social.
As ciências sociais mostraram que na América Latina a democracia sempre foi um mal-entendido, uma ideia fora do lugar, um sistema de privilégios, um instrumento de promoção da desigualdade e da violência das elites latino-americanas contra os mais pobres. A consequência foi essa violência social generalizada, o agravamento das desigualdades, essa trágica normalidade. O pior é que não há muitas esperanças. A situação parece regredir.
A média da confiança interpessoal nos 20 anos de pesquisa é de apenas 17%. Uruguai, Argentina e Panamá lideram o ranking com 22% de confiança entre as pessoas. O Brasil aparece em último lugar com apenas 7%. Quanto às instituições da democracia, os resultados de 2015 mostram que os governos aparecem com uma média de 33% de confiança; os Congressos com 37%; o Judiciário com 30% e os partidos com 20%.
Em 1995, quando a pesquisa começou a ser feita, os governos apareciam com 44%, os Congressos com 38%, o Judiciário com 37% e os partidos com 27%. A partir de 2010 passou-se a incluir o Estado como um item específico, que aprecia com 42% e hoje aparece com 34%. Outro dado interessante se refere aos sindicatos: eles apareciam com 35% e hoje têm 29%. Mesmo as instituições mais confiáveis como Igreja, Forças Armadas, Imprensa etc., todas apresentam quedas nos índices de confiança que inspiram. As empresas privadas aparecem numa faixa intermediária entre essas instituições melhor avaliadas e as instituições da democracia.
Os números mostram que de cada 10 latino-americanos 6 não confiam nas instituições da democracia. As alternativas políticas de direita, centro-liberal e esquerda não conseguiram produzir resultados expressivamente diferentes umas das outras, o que mostra que a região está mergulhada em grave crise de perspectivas em relação ao futuro. As diferentes alternativas parecem mover-se na lógica de produzirem resultados razoáveis quando ascendem ao poder para acabar em crise. Os novos ciclos de governos de alternativas que se alternam não são capazes de romper a trágica normalidade. O Uruguai é a única exceção, pois vem conseguindo aumentar os índices de confiança em todas as instituições da democracia com o passar dos anos.
O advento da Internet não conseguiu melhorar a confiança dos latino-americanos. A debilidade das redes sociais, das organizações da sociedade civil e dos valores de solidariedade e de comunidade resultam da disseminação da cultura de que apenas o esforço individual, mesmo que através da burla e da fraude social, é o caminho mais adequado para melhorar de vida. A profunda desigualdade da região gera violência e desconfiança. A conclusão do estudo indica que os níveis de confiança só crescerão com o avanço da democracia. A democracia só avançará se as desigualdades econômicas, sociais e de poder forem reduzidas. O desmantelamento das desigualdades requer luta solidária e empreendimentos sociais coletivos.
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