sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Arábia Saudita: Os decapitadores escolhidos pelo Ocidente

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Os EUA não teriam sido capazes de dominar o Oriente Médio sem sua aliança com a Arábia Saudita. Por isso o silêncio de Obama diante das execuções.
As recentes execuções na Arábia Saudita deveriam deixar muito claro que a “guerra ao terror” das potências ocidentais não tem nada a ver com uma suposta oposição às decapitações ou ao fanatismo religioso sectário. Em vez de condenar esses crimes, os Estados Unidos, o Reino Unido e outras potências ocidentais continuam dando ao regime saudita, se não seu apoio público, ao menos um suporte prático. Tudo em nome de supostas necessidades e alianças criadas pela “guerra ao terror”.
Esses crimes fazem parte dos esforços da família real saudita para manter seu poder através de violência estatal e autoridade religiosa, ambos representados pela espada do carrasco. O mais proeminente dentre os executados foi Nimr al-Nimir, um líder do clero xiita julgado secretamente e condenado por apoiar o movimento de protestos que tomou a população xiita na Arábia Saudita oriental e partes vizinhas de Bahrain em 2011; movimento esse particularmente popular entre a juventude influenciada pela Primavera Árabe. Muitas pessoas acusadas de participar de comícios na época, presos quando ainda eram adolescentes, devem ser executadas a seguir.
A execução de Nimir, ao lado da de muitos outros xiitas, foi uma resposta hedionda a protestos legítimos contra a discriminação presente no mercado de trabalho, no meio educacional, entre outros – prova de que o regime saudita, em vez de se afastar do fanatismo religioso característico do reino de Salman e de seus príncipes, está ampliando o uso de assassinatos, justificados por religião, para silenciar adversários políticos.
Mais do que isso, trata-se de um deliberado ato de provocação, direcionado a autoridades xiitas internacionalmente, em particular ao regime iraniano. Provavelmente existe a perspectiva de dificultar relações diplomáticas desse país com os Estados Unidos, uma vez que o Irã, também conhecido por realizar execuções em massa, deve dar uma resposta à altura.
Também há clara intenção de acabar de uma vez com qualquer questionamento da legitimidade da Casa de Saud por parte da Al Qaeda, do Estado Islâmico ou semelhantes, tanto dentro quanto fora do reino e até mesmo dentro da família real, tomando o papel de liderança de todos os sunitas e insinuando uma batalha religiosa.
As execuções foram um ato bárbaro mas não desmedido – elas serviram a objetivos políticos claros, os mesmos por trás da guerra saudita contra o Iêmen e os esforços sauditas para confrontar o regime de Assad e seus apoiadores iranianos em termos religiosos, desafiando a sharia do Estado Islâmico ao impor a sharia saudita. Esses são objetivos que, em alguns aspectos, convergem com os planos das potências ocidentais a respeito de como moldar o caos no Oriente Médio para o seu benefício.
A diferença entre o Estado Islâmico e o regime saudita não pode ser medida em termos de moderação ou crueldade. Embora a relação da monarquia com os Estados Unidos seja complexa e volátil – os Estados Unidos já atuaram nos dois lados da disputa sunita/xiita, inclusive tendo trabalhado com o regime xiita fundamentalista iraniano em alguns momentos – o fato é que os Estados Unidos e seus aliados não teriam sido capazes de dominar o Oriente Médio sem sua aliança com a Arábia Saudita, por mais problemática que essa aliança seja para ambos os lados atualmente.
Por isso, o presidente norte-americano Barack Obama, o primeiro ministro britânico David Cameron e o presidente francês François Hollande têm silenciado diante das execuções. A princípio, representantes demonstraram desgosto diante da situação de “tensão sectária na região”, como se a intervenção ocidental em si não fosse o maior fator de agitação do conflito religioso no Oriente Médio. Conforme as ondas de choque foram se colocando, seus governos expressaram sua preocupação apenas a respeito dos inconvenientes políticos que poderiam ser criados, e não sobre a injustiça do ato.
O editorial de 4 de janeiro do Independent britânico não poderia ter sido mais explícito: ao mesmo tempo em que se distancia do entusiasmo desavergonhado do Partido Conservador britânico a respeito do regime saudita – note-se que o primeiro ministro Cameron recentemente apoiou a candidatura saudita ao Conselho de Direitos Humanos da ONU – o jornal concluiu que “não é do nosso interesse ver, e menos ainda provocar, a queda do regime de Saud”. É essa também, é claro, a política seguida por Obama, quem há um ano proclamou “a importância da relação Estados Unidos – Arábia Saudita como uma força na promoção da estabilidade e segurança do Oriente Médio e além.”
Os imperialistas ocidentais sempre souberam como atua o regime saudita. Sempre houve decapitações de apóstatas (pessoas acusadas de abandonar o Islã): está agendada a execução do jovem poeta e artista palestino Ashraf Fayadh, justamente por esse “crime”. Muitas das 153 pessoas executadas em 2015 e do total de 2200 pessoas nas últimas três décadas eram trabalhadores migrantes, principalmente do Sul da Ásia, os quais construíram os palácios da região do Golfo, shopping centers, museus, estádios esportivos e outras maravilhas arquitetônicas, virtualmente submetidas à espada real.
Os governantes sauditas devem suas espadas, no sentido mais amplo da palavra, às potências ocidentais. Em novembro, pouco antes das execuções e bastante depois do governo saudita anunciar seu plano para realizá-las, o Departamento de Estado de Obama aprovou uma solicitação saudita para comprar US$1,29 bilhão em bombas e mísseis. O website do Departamento de Estado oferece com frieza um inventário das compras, o tipo de munição que a Arábia Saudita e seus aliados no Golfo tem feito chover sobre as cabeças do povo do Iêmen, numa guerra que já matou pelo menos 5700 pessoas, metade delas civis, desde que começou a invasão por ar e terra em março de 2015. Essa guerra de agressão contra um país que a Arábia Saudita considera tradicionalmente seu “quintal” não poderia acontecer sem o apoio logístico, o reabastecimento aéreo e os times de caça providenciados pelos Estados Unidos – o que torna Washington diretamente responsável pelo bombardeio de escolas e hospitais.
Apesar dos fatores serem complexos, essa guerra, assim como as execuções, está sendo travada em nome da autoridade religiosa da família real saudita contra xiitas e outros infiéis. Os rebeldes houthi, cuja crença Zaydi faz da sua fé uma prima do xiismo, são apoiados pelo Irã – o que está longe de ser o principal fator da rebelião dos houthis e de outros contra o regime da Arábia Saudita. Esse é outro exemplo de como os sauditas estão buscando agravar a dimensão religiosa dos conflitos da região – com apoio concreto dos Estados Unidos.
Obama veio pessoalmente encontrar-se com o Rei Salman, depois deste ser entronado há um ano, e seu reino tem sido aclamado como a inauguração de uma era de reforma por ocidentais, assim como aponta o comentarista liberal norte-americano Thomas Friedman (em texto no New York Times de 25 de novembro de 2015, escrito quando essas execuções já estavam agendadas). A principal “reforma” até então tem sido promover eleições para as insignificantes estruturas municipais, e permitir que mulheres votem, apesar de não poderem dirigir ou tomar qualquer decisão sem permissão de seu homem responsável. Ao longo do último ano, o regime saudita tem ampliado suas execuções, em alguns casos crucificando os corpos decapitados e deixando-os a apodrecer publicamente.
Membros da família real (que, graças à poligamia, chega ao número de milhares) e membros do alto escalão do próprio regime tem apoiado a Al Qaeda. O regime recebeu duras críticas da Al Qaeda a respeito do estacionamento de tropas norte-americanas nas terras sagradas do Islã, o que culminou com a transferência de tais tropas para bases em outros lugares do Golfo. Na Síria, a Arábia Saudita tem armado e financiado uma variada constelação de alianças fundamentalistas islâmicas. Quanto ao Estado Islâmico, que compartilha da ideologia Salafi (fundamentalista) que legitima o poder da Casa de Saud e, de forma semelhante, baseia seu sistema na opressão de mulheres, a mudança de seu nome de Estado Islâmico do Iraque e do Levante para apenas Estado Islâmico sinalizou uma ameaça direta à alegação de autoridade do regime saudita sobre todos os muçulmanos sunitas.
A monarquia absoluta saudita exige obediência e apregoa ser a terrena “protetora de Ummah” (a assim chamada comunidade de fiéis) e não por meio de poder religioso direto como o califado do Estado Islâmico, liderado por um auto-aclamado descendente de Maomé. Essa distinção é um perigo à existência da dinastia saudita, apesar de não representar uma grande diferença, especialmente se levarmos em conta que a resposta saudita à marca registrada do Estado Islâmico – de exterminar xiitas como apóstatas, além de infiéis – foi superar seus números e se tornar a maior assassina de xiitas.
As potências imperialistas ocidentais sabiam muito bem o que queriam ao se envolverem com a monarquia saudita. O Reino Unido ajudou a estabelecer a monarquia em 1932, depois de encorajar a ascensão do Wahhabismo (a forma específica de Salafismo associada com autoridades tribais árabes) em sua campanha para absorver o império Otomano. Em um tratado de 1945, assinado por Franklin D. Roosevelt, os Estados Unidos prometeram manter a monarquia saudita no poder, um pacto renovado por George W. Bush em 2005. Apesar dos Estados Unidos terem tomado o país do Reino Unido, como forma de substituir a dominação britânica sobre o Oriente Médio, o Reino Unido permanece mantendo laços financeiros e militares próximos com a Arábia Saudita. A França, sob o governo do presidente socialista Hollande, está agora forjando novos vínculos políticos e militares com o regime.
Ainda assim, a associação da Arábia Saudita com o imperialismo transformou profundamente o regime e sua classe dominante. Assim como em outros países do Golfo, ela se transformou num grande espaço de acumulação de capital dentro do capitalismo global dominado pelas potências imperialistas ocidentais. Isso aconteceu, por um lado, através da exploração no Golfo de trabalhadores do mundo islâmico e, por outro, pelo investimento de capital saudita e do Golfo em países muito maiores como o Egito, cuja economia, política e vida religiosa são amplamente condicionadas por essa relação.
De diversas formas, tais como influência política e subsídios a regimes como o paquistanês, a pregação religiosa para os milhões de árabes vindos para trabalhar no Golfo, o financiamento de grandes instituições religiosas e “filantrópicas” e centenas de pregadores televisivos e expoentes midiáticos, a Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo são os principais vetores que trazem o Salafismo moderno ao mundo sunita. Isso ocorre ao mesmo tempo em que todos esses países se aproximam cada vez mais do mercado internacional e do sistema capitalista global, com uma decorrente rivalidade inevitável entre as classes dominantes, que apenas são capazes de acumular capital em competição mortal umas com as outras.
É verdade, como disse Obama, que “a relação entre Arábia Saudita e Estados Unidos” tem sido inestimável pros EUA e pro Ocidente como uma “força na promoção da estabilidade e da segurança do Oriente Médio”. Mas, ao mesmo tempo, essa relação proporcionou condições para a instabilidade atual na região, em que a contínua dominação norte-americana não garantiu um cenário seguro de forma alguma. Grandes riscos exigem medidas desesperadas.
Muita gente, especialmente no Oriente Médio, cujo povo é de longe o maior alvo e a maior vítima do Estado Islâmico e de toda forma de fundamentalismo islâmico, considera que os Estados Unidos deliberadamente criaram o Estado Islâmico. Isso não é literalmente verdade. Apesar de Washington, Londres e Tel Aviv terem encorajado o islamismo em resposta a tendências políticas mais radicais na região, e apesar das forças imperialista terem criado as condições nas quais eles surgiram, as várias formas de fundamentalismo islâmico são um problema sem solução para os Estados Unidos e para outros imperialistas ocidentais. Ainda assim, a realidade sobre a qual se constrói a “guerra ao terror” não é um mero conflito bilateral. Em vez disso, imperialistas rivais e poderes regionais estão tentando avançar em seus próprios interesses reacionários entre acordos e conflitos, uns contra os outros, num campo de batalha muito complexo que pode ser interpretado como “cada classe dominante por si”. Ao mesmo tempo, de forma geral, todos esses adversários estão alimentando fundamentalismo religioso de algum tipo, não só intencionalmente, mas também como resultado de suas manobras políticas e militares e pelas relações econômicas retrógradas que eles representam.
O capital imperialista, agora representado por pessoas como Obama e seus colegas “líderes ocidentais”, precisa da autoridade de pessoas como o rei Salman e de seus príncipes assassinos, que remetem a ideologias e sistemas sociais antigos, mas que devem seu poder ao imperialismo moderno. Os Estados Unidos e seus parceiros e rivais não podem deixar de fomentar fundamentalismos como o islâmico no século 21. A “guerra ao terror” é uma fraude – é uma competição de quem consegue impor seus interesses e o maior terror.

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