A última segunda-feira foi o primeiro dia do oficial desligamento dos 60 mil funcionários. Por que será que nenhum jornal deu destaque a tal absurdo?
O Brasil tem 5.037 municípios com uma população de até 50 mil habitantes. Isso equivale a mais de 90% de um total de 5.561 municipalidades. Os números contrastam e revelam que uma parte significativa da população brasileira vive em cidades que, para os nossos padrões, são consideradas pequenas. Sua existência é quase inacreditável para um paulistano típico, nascido e criado em uma das maiores cidades do mundo, em meio a outros 10 milhões de pessoas.
Os números acima revelam. Porém, os jornais, não. Essa semana vivemos mais um capítulo do imbróglio mineiro da lei 100. O Supremo Tribunal Federal determinou que quase 59.412 servidores públicos, efetivados em uma canetada, em 2007, pelo então governador Aécio Neves, hoje senador e atual presidente de seu partido, o PSDB, fossem desligados (clique aqui). O STF alega inconstitucionalidade no processo de admissão do funcionalismo público que, como se sabe, se faz exclusivamente por concurso público, de concorrência ampla em praticamente todos os seus setores e instâncias – federal, estadual e municipal (clique aqui). O senhor Aécio parece que não entendeu.
Devido à carência da cobertura jornalística, os números de servidores efetivados em 2007 são incertos. Mas, já se fala em cerca de 76 mil. Descontando os aposentados e desligados por motivos diversos, o saldo da dispensa determinada pelo STF é de 60 mil. Como visto no primeiro parágrafo deste texto, se reuníssemos todos esses servidores em um mesmo lugar, teríamos mais uma cidade brasileira. Para deixar os nossos números mais interessantes, uma comparação bem popular: à exceção do Flamengo e Coritiba, no dia 17 de setembro, em Brasília, nenhum outro jogo do Brasileirão 2015 chegou à cifra dos 60 mil.
José Murilo de Carvalho, em seu Construção da ordem, demonstra como os bacharéis coimbrenses do século 19, filhos da elite agrária brasileira, ao voltarem para o Brasil, encontram-se praticamente distantes de qualquer possibilidade de uma atuação profissional que garanta o mesmo “prestígio” político e econômico de seus pais, de sua tradicional família. E assim ingressam no serviço público – contribuindo, quiçá, para a compreensão do motivo de alguns de seus salários serem tão exorbitantes (mas isso é conversa para outro texto). Faz-se, então, a fama de um funcionalismo público, alvo de muitos comentários jocosos, que, a despeito da qualificação profissional, garante uma estabilidade econômica invejável por muitos. Debalde a constante instabilidade da política e economia tupiniquim, ter o salário garantido no final do mês é uma grande vantagem.
Nada mais do que normal que estes funcionários efetivados na canetada do senador mineiro adquiram dívidas – como a da casa própria – e planejem o seu futuro, as vezes o futuro de uma família em função do cargo concedido por uma autoridade política e administrativa como o próprio governador (clique aqui). Com tal chancela, pensa-se, minimamente, que ele sabe o que está fazendo. Aliás, admite-o como uma figura extremamente preocupada com a máquina pública e com a qualidade dos serviços à medida em que procede de tal maneira. Para alguns, designados por eternos contratos, sempre renovados, isso soa como uma calma e fina canção mineira como a de Milton Nascimento.
Mas, não. Não foi muito difícil para o STF determinar a inconstitucionalidade da tal lei 100. E, agindo constitucionalmente, determina a sua revogação, bem como a devolução dos cargos indevidamente ocupados ao governo do estado de Minas Gerais, que, por sua vez, deve tomar providências para a sua ocupação através de concurso ou novas designações contratuais. É difícil discordar do STF. Mas, é difícil não se comover com as vidas que aí estão em jogo – vítimas da irresponsabilidade administrativa de uma pessoa. A mídia nacional, entretanto, parece não se preocupar muito.
A última segunda-feira, dia 4 de janeiro de 2016, foi o primeiro dia do oficial desligamento dos funcionários da lei 100 – a maioria alocados na educação pública estadual. Sendo eu juiz-forano, digo que saiu uma nota aquém do destaque merecido no principal diário da cidade, o Tribuna de Minas. Na Folha de S.Paulo, nada. No periódico da família Frias um assunto como este perde fácil a disputa para notícias sobre o parlamento venezuelano e novos valores da passagem de ônibus em algumas capitais. Pelo lado da família Marinho as atenções estão para o crack chinês e o seu fortíssimo indício de que a crise econômica não é só no Brasil, exigindo de seu jornalismo novas estratégias políticas de abordagem do tema. Até mesmo no mencionado jornal da Zona da Mata mineira as informações quanto a um acidente na avenida JK, em Juiz de Fora, adquirem mais destaque por mais tempo – aliás, manifesto a minha solidariedade às vítimas.
Resumindo, se um estádio de futebol lotado em mais de 90% de sua capacidade com funcionalismo público mineiro desaparece, a grande mídia brasileira não tem nada com isso. Pode-se exterminar toda uma cidade que isso não é importante. É óbvia a responsabilidade do político tucano, com imagem recentemente abalada pelas declarações de Carlos Alexandre de Souza Rocha, o Ceará, funcionário de Alberto Youssef, na já familiar Lava-Jato. É igualmente óbvia a sua responsabilidade, enquanto gestor de uma unidade federativa, pelo destino de quase 60 mil pessoas efetivadas por uma canetada, bem como dos recursos públicos movimentados neste caso. A quem interessa a desinformação?
Em clima de denúncia política, ingerência na administração pública é algo praticamente irrelevante – a não ser que se possa associar a atividades relativas a bicicletas, como pedaladas e ciclovias. Além de responder às denúncias de corrupção feitas pelo mesmo delator que o PSDB outrora atribuía tanta autoridade, há que responder também por incompetência. Dizia Wanderley Guilherme dos Santos que se as instituições políticas falham, resta o caráter.
No caso mineiro, com a administração nas mãos de Aécio, as instituições falharam. Sobrou apenas seu caráter – o mesmo acusado por Ceará. Agora, questiono-me fundamentado nos preceitos mais éticos do jornalismo se o princípio de Wanderley não poderia ser transposto para os veículos de informação. Eles, com suas instituições, não falhariam ao não veicularem com a devida importância algo de tamanha relevância para o Brasil? E, se falharam, resta-nos o caráter destes jornalistas? Se, sim: que dó.
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