A sensação de vergonha alheia é uma das piores. Prefiro viver um vexame eu mesmo do que ver alguém passando por ele. Pois, não raro, a pessoa não se dá conta e vai se afundando na lama. É um sentimento de piedade interminável. O horror, o horror.
A aprovação do Estatuto da Família – que restringe “família” a apenas uma união entre um homem e uma mulher – em uma comissão especial na Câmara dos Deputados é mais um exemplo desses momentos de vergonha alheia que a bancada do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional nos proporciona com frequência.
Se isso for levado a plenário e aprovado por lá e depois no Senado e se a Presidência da República não vetar a sandice, certamente o Supremo Tribunal Federal – que já afirmou que família não é só papai e mamãe heterossexuais – vai botar ordem no barraco, dando conta de sua inconstitucionalidade.
Isso é extremamente ofensivo a famílias que fujam desse modelo hegemônico nuclear heterossexual. Há tantas combinações possíveis que nem dá vontade de contar: famílias compostas de casais (ou grupos) heterossexuais, homossexuais, bissexuais com ou sem filhos, arranjos monoparentais bissexuais e transexuais com ou sem filhos, solteiros sem filhos, mas com gato persa, buldogue inglês, peixe-palhaço e hamster-urso (é um peludão, muito fofo).
Enfim, família são aqueles com quem você decide compartilhar sua vida pelo tempo que acha que assim deve ser. Fluído e impreciso mesmo, como as relações humanas.
Ou, se quiser a definição do IBGE: “Família – conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar”. Ninguém falou de órgãos reprodutores nessa definição.
Além do mais, esse tipo de proposta é de um machismo bisonho. Pois cresceu, ao longo dos anos, das conquistas profissionais, dos métodos contraceptivos, da militância do feminismo, o número de famílias comandadas e formadas só por mulheres. O que assusta o homem inseguro brasileiro – alguns dos quais adoram falar em nome de Deus ou em nome do povo.
A verdade é que apesar da influência de grupos religiosos contrários a mudanças, mais cedo ou mais tarde, o Brasil irá garantir dignidade a todos os seus cidadãos. Sei que otimismo não combina comigo, mas hoje é sexta.
O problema é que essa caminhada está sendo bem lenta quando deveria correr rápida para dar tempo às pessoas que hoje vivem de desfrutarem uma nova realidade. Adotar filhos ou não ser vítima de homofobia, por exemplo.
É um completo absurdo que a essa altura da História nossa sociedade ainda esteja discutindo se deve ou não universalizar direitos. Que, de tempos em tempos, homossexuais e transexuais sejam espancados e assassinados nas ruas só porque ousaram ser diferentes da maioria. Que seguidores de uma pretensa verdade divina taxem o comportamento alheio de pecado e condenem os diferentes a uma vida de inferno aqui na Terra.
Consciência não tem a ver com classe social – a diferença de um olho roxo deixado pela covardia de homens pobres ou ricos está apenas no preço da maquiagem usada pelas mulheres vítimas de violência para escondê-lo.
Consciência não se aprende na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho.
Consciência tem a ver com a vivência comum na sociedade, a tentativa do conhecimento do outro, a busca por tolerar as diferenças.
O Congresso Nacional que, por vez ou outra, transpira as mais bizarras formas de preconceito é fruto do tecido social em que está inserido – e sim, essa última esbórnia é um reflexo de nós mesmos. Eles somos nós.
Porque, na prática, uma decisão tomada pelo Legislativo tem em seu âmago o mesmo preconceito das piadas maldosas contra gays ou dos pequenos machismos em que nós (e não me excluo disso) nos afundamos no dia-a-dia. O que difere é o tamanho do impacto, não sua natureza.
Por fim, o que indigna com tudo isso é que uma parcela do tempo preciosa (e bem remunerada) que deveria estar sendo usada pelos congressistas para discutir formas para que saiamos do atoleiro econômico e para garantir dignidade a trabalhadores e grupos sociais vulneráveis é gasta com essa presepada toda.
Neste momento, se Deus existir, deve estar mais preocupado em processar esse pessoal que se diz seus representantes políticos aqui na Terra. E não lançando maldições para pessoas do mesmo sexo que decidem viver junto. Isso aí fica a cargo de outra figura mitológica: o capeta.
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