sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Ainda há juízes no Brasil… Até quando?

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No Brasil, os juízes de verdade estão cada vez mais escassos por falta de coragem.
Francisco Campos, ministro da Justiça do Estado Novo entre 1937 e 1942, autor da Constituição de 1937, que justificou o golpe de Estado de Getúlio Vargas e do Ato Institucional nº 1, que pretendeu dar legitimidade para o golpe de 1964, foi também responsável pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal, de inspiração fascista, ainda em vigor no país.
Afinal, se 98% da população carcerária brasileira é composta de negros e pobres, isto não é por acaso. E hoje, ante o Projeto de Lei do Senado 402/2015, que pretende adulterar o conteúdo do Código de Processo Penal no sentido de permitir que se antecipe a prisão de réus antes de sentença condenatória transitada em julgado, Francisco Campos, uma das mais ilustres inteligências da direita brasileira, estaria em êxtase.
Chico Ciência, como ficou conhecido, chancelaria de olhos fechados este projeto porque ele permite, de forma sorrateira, que se destruam garantias constitucionais caras ao Estado Democrático de Direito em prol de um sistema repressivo de natureza autoritária. A felicidade de Campos seria a de podermos chegar a uma ditadura de fato sem a necessidade de golpes de Estado ou de rupturas institucionais. A aprovação do PLS 402/2015 seria um passo importante nesta direção.
Um primeiro paralelo óbvio entre a ordem jurídica do Estado Novo e os projetos legislativos que a direita consegue emplacar sistematicamente no Brasil das últimas décadas é que em ambos os casos, a opinião publicada nos meios de massa aplaude sem pudores ao espetáculo. E este aplauso é, obviamente, artificial, financiado e interessado.
Outro paralelo, na verdade, é uma linha reta de continuidade entre os projetos de um regime jurídico inspirado então nas potências do eixo (Alemanha, Itália e Japão) e as propostas atuais de reforma do sistema repressivo importadas do maior sistema carcerário do mundo, os EUA. O objetivo comum a estes momentos históricos é a flexibilização e mesmo a extinção de garantias fundamentais que protejam os cidadãos contra o arbítrio do Estado penal.
Também agora, como então, os projetos fascistas não surgiram sem alguma reação das forças democráticas. A diferença gritante é que hoje o projeto autocrático, assim como a reação pluralista e democrática, disputa espaço no Poder Judiciário. E não é preciso muito tutano para perceber quem está ganhando a batalha.
Ainda assim, não é também muito difícil perceber quem realmente estuda Direito e argumenta a partir de informações abalizadas e quem, por outro lado, se sustenta em entulhos ideológicos descolados, por exemplo, de estatísticas. Na quarta-feira, dia 9/9, o confronto entre modelos distintos de ordem política aconteceu na Audiência Pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, quando o tal projeto de lei, oPLS 402/2015, foi fruto de discussão.
A apresentação desta aberração legislativa é dos senadores Aloysio Nunes Ferreira (PSDB/SP), Álvaro Dias (PSDB/PR), Gleisi Hoffmann (PT/PR), Ricardo Ferraço (PMDB/ES) e Roberto Requião (PMDB/PR). Este agrupamento heterodoxo de senadores dá a impressão de que alguém está pagando um pedágio político por algum motivo ainda obscuro.
Seus defensores originais, os membros da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), argumentam que casos notórios servem de exemplo da morosidade da justiça, onde o excesso de recursos protela ou mesmo impede o término dos processos criminais, evitando a condenação dos responsáveis por crimes graves.
Para estes, com o objetivo de tornar a justiça menos morosa é correto que “ao proferir acórdão condenatório por crimes hediondos, de tráfico de drogas, tortura, terrorismo, corrupção ativa ou passiva, peculato, lavagem de dinheiro ou do art. 2º da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, o tribunal decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar”.
Isto é, o PLS 402/2015 defende que, após sentença condenatória do Tribunal de Justiça, este possa impor, como regra, a prisão para determinados crimes. Isto eliminaria o “caráter protelatório” de recursos que, na legislação atual, suspendem a prisão de réus enquanto estes não são julgados em definitivo.
O problema é que nosso sistema constitucional – apesar de nosso histórico autoritário – cerca de direitos processuais os cidadãos brasileiros que, mesmo processados e condenados, têm a garantia do duplo grau de jurisdição e todos os recursos a ele inerentes, bem como fazem jus à presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença condenatória.
Este sistema processual, que desde sempre sofreu ataques por todos os lados, foi erigido durante um período de afirmação política de uma democracia que encontrou formalização constitucional. Pelo menos em termos formais, de processo penal, nossa Constituição é mesmo cidadã. Mas, como no Estado Novo, tem gente que quer acabar com isto.
Assim, é importante frisar que este projeto de lei não encontra guarida passiva na própria magistratura. Juízes criminais convidados para a referida audiência pública foram taxativos em afirmar a inconstitucionalidade do projeto e a ameaça que o mesmo traz para a democracia brasileira.
Num momento em que vemos juízes nos meios de comunicação de massa falando quase exclusivamente em mais punições e mais penas, como se o sistema repressivo brasileiro não fosse um dos maiores do mundo, realmente é surpreendente ver juízes reconhecidos nos meios jurídicos e na academia defenderem a democracia e as regras do jogo do Estado de Direito.
Como disse o jurista Leonardo Isaac Yarochewsky, explicitando o caráter da disputa dentro do judiciário, “o projeto de lei, autoritário e inconstitucional, foi defendido pelo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, pelo presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e por uma representante da Procuradoria Geral da República. [...] Do outro lado, defendendo os direitos e garantias fundamentais, defendendo a Constituição da República e em defesa do Estado democrático de direito, destacaram-se os juristas Rubens R. R. Casara [juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro e processualista penal], Elmir Duclerc Ramalho Júnior [promotor de Justiça na Bahia e professor de Direito Processual Penal], Marcelo Semer [juiz de Direito em São Paulo e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia] e Maurício Stegemann Dieter [professor de Criminologia da Faculdade de Direito da USP].”
Assistir o vídeo da audiência é uma forma didática de compreender os projetos em disputa. Há muito não se via no país um debate de alto nível técnico no Congresso Nacional sobre legislação de natureza penal e processual penal. A aprovação de leis incriminadoras com argumentos de comoção – e, portanto, irracionais – foi a tônica usual das últimas décadas.
Sem espaço para noticiar todas as falas dos juristas citados acima, destaco a de Rubens Casara, que representa com fidelidade o que uma parte boa da comunidade jurídica entende sobre a situação atual dos poderes da República. A fala de Casara, pela contundência e didática, revela que ainda há juízes no Brasil. Mesmo numa situação em que há cada vez maior dificuldade para os juízes legalistas cumprirem a sua função conforme a Constituição, basicamente por medo de serem etiquetados pela mídia de massa como comunistas, petralhas ou corruptos, como deixou claro em sua exposição. No Brasil, os juízes de verdade estão cada vez mais escassos por falta de coragem.
Iniciando o bloco “crítico” ao projeto de lei, num discurso que visivelmente prendeu a atenção dos senadores e incomodou os autores do projeto, o juiz Rubens Casara fez questão de dizer o básico: “O Estado de Direito se caracteriza pela existência de limites ao exercício do poder. Nas democracias, os principais limites são os direitos e garantias fundamentais. Cada vez que um limite é afastado, cada vez que um limite ou garantia constitucional é relativizado, o Estado caminha rumo ao autoritarismo, ao Estado Policial, ao Estado Total.”
Feita a apresentação da tese fundamental, Casara apontou que a conjuntura de surgimento do projeto claramente viola a presunção de inocência: “No contexto em que há um sucesso midiático-popular de uma grande operação de combate à corrupção conduzida pelo professor [sic] Sérgio Moro, chamada Operação Lava-Jato.”
Para o juiz, este projeto não tem a capacidade de acelerar qualquer processo criminal, mas apenas de aumentar as hipóteses de encarceramento “enquanto o processo continua”. O projeto “se insere num movimento que se caracteriza pela tentativa de satisfazer o desejo por mais punições, as pulsões repressivas presentes na sociedade [compreensíveis], mas que se revela ineficaz para a prevenção de novos delitos.”
Ele prefere chamar as coisas pelos devidos nomes. O PLS 402/2015 é para Casara um projeto de “relativização da presunção de inocência, na contramão da jurisprudência da Corte interamericana, em matéria de prisão cautelar”. Para o juiz, inclusive, pesquisas variadas demonstram que o aumento do encarceramento é completamente ineficaz para a diminuição da prática de delitos.
Ainda para o juiz carioca, o que o projeto faz, na prática, é transferir o ônus de prova do Estado para o indivíduo. Em vez de o Estado ter a responsabilidade de provar a culpa do processado, este último é que precisa provar que não irá fugir ou que não praticará novas infrações no futuro – a famigerada “prova diabólica” –, virtualmente impossível de ser realizada.
Casara lembrou que a justificativa do projeto de lei não é nova, aparecendo, por exemplo, no nazismo alemão, no stalinismo soviético e no Código Rocco, marco legislativo do fascismo italiano, apropriado pelo Brasil no Estado Novo e que gerou nosso Código de 1940. Tal legislação é caracterizada exatamente pela relativização de direitos. Para ele “em todo momento autoritário que passa a sociedade essa linha argumentativa se faz presente” e – continua –, num diapasão de justificação dos meios pelos fins, se perde a legitimidade ética do exercício do poder.
Tachado de inoportuno pelo autor do projeto, o senador Requião, Casara não teve foi a oportunidade de tréplica. Mas ficou claro que a carapuça serviu perfeitamente, à medida que o senador preferiu desqualificar o oponente e falsear argumentos que foram expressos de forma cortês e bastante clara.
Ficou patente que o projeto de lei em discussão quer trazer ares de legalidade à prática condenável do encarceramento sem condenação, legitimando a antecipação – e a presunção – da culpa no processo penal brasileiro. Se isto acontecer, serão provavelmente a ínfima minoria, mas ainda teremos juízes a querer defender os direitos fundamentais inscritos em nossa Constituição. E a vida dos Francisco Campos wanna be ainda será um tanto dificultada. Mas até quando?

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