Nas ruas, a violência e a dureza da vida. Na sala de aula, a liberdade, a palavra, o afeto. Novo filme cubano é uma lição para o Brasil.
Numa escola de Havana (Conducta/2014) é um filme que chega justamente a tempo para enriquecer a importante discussão, no Brasil, sobre a redução da maioridade penal – decisão determinante para o protagonismo das nossas gerações futuras. O excelente segundo filme do cineasta cubano Ernesto Daranas – autor de outro longa metragem, Los dioses rotos –, em colaboração com um grupo de sete alunos da Faculdad de Cine del Instituto Superior de Arte (ISA), de Havana, é mais uma produção cheia de vida do novíssimo cinema latino-americano de língua espanhola que desponta com força e tem na Argentina o seu carro chefe consolidado.
Foi indicado por Cuba para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, e para o Prêmio Goya. Ganhou o Festival de Cinema de Havana e foi recebido com entusiasmo nos festivais de Bogotá e de Portland, EUA. No eixo Rio – São Paulo o filme, em cartaz, faz sucesso, e o estudante cubano de 15 anos, Armando Valdès Freire, hoje, é uma estrela nacional na sua terra. A interpretação do personagem central de Conducta, o Chala, é vigorosa e surpreende pela excelência.
Daranas agora repete a mesma temática do seu primeiro filme. Fala de violência e lealdade, com um recorte da marginalidade na sociedade de Havana – no caso do filme, o uso de drogas e as rinhas clandestinas das cruéis lutas de cães. “Procuramos trazer para o centro da conversa a marginalidade”, disse o cineasta em entrevista. “É uma problemática constante nas nossas vidas embora se expresse sutilmente. Mas temos que encarar os olhos do nosso país, hoje, para podermos falar com seriedade desta Cuba tolerante, participativa e inclusiva cujo reflexo, no filme, é a sala da aula da professora Carmela.”
A sala de aula de Carmela – encarnada por outra atriz excelente, Alina Rodriguez, falecida há dois meses – é onde Chala, de 11 anos, se sente bem. Nela, impera a liberdade e diversidade de expressão, a palavra, o afeto. O menino é um líder nato, tem carisma, é inteligente, um talento nato e bom aluno. Em sua casa, em Habana Vieja, um dos bairros mais pobres da capital cubana, vive em um mundo de violência na companhia da mãe solteira viciada em drogas e alcoólatra, e cuida dos pombos que vende, e de cachorros de rinha: trabalho brutal pelo qual é remunerado, e vem a ser a base do seu sustento econômico e da mãe.
Quando a professora, já de idade, sofre um enfarto e é obrigada a se ausentar da escola durante vários meses, sua jovem substituta, despreparada para lidar com a personalidade insubordinada do garoto, o transfere para um reformatório como manda a inflexibilidade do sistema. As famosas regras de conduta existentes em todas as partes que ignoram a essência humana de cada indivíduo.
Ao voltar, a professora Carmela não acredita nem aceita a solução do reformatório para o caso do garoto, como crê a escola e as normas inflexíveis da superestrutura. A relação entre a professora de 70 anos – que viveu na pele as diversas e difíceis fases pelas quais passou o seu país – e o menino de rua que nela encontra amor e cuidado se torna cada vez mais estreita.
Contornando com habilidade rastros de pieguice da história, o roteiro do filme, do próprio Daranas, não entra em considerações sobre as virtudes nem os vícios do sistema educacional de Cuba, considerado e reconhecido pela ONU, aliás, como exemplar e comparável ao da Finlândia e da França, onde a profissão dos professores é tratada com dignidade. Mas aponta a necessidade de o estado intervir, sim, como faz a emblemática professora Carmela quando diz à representante inflexível estatal: “O professor deve saber o que se passa com seus alunos lá fora, na rua. Se você não entender isto, não compreendeu nada.”
Sala de aula e rua pertencem ao mesmo conjunto de vivências que podem sugerir assistência às crianças em risco social – porém de modo criativo, flexível e com todo cuidado, proporcionando atenção amorosa e proteção quando estas faltam à infância e à adolescência do imenso contingente de garotos pobres das periferias das cidades latino-americanas engolfados pela violência do ambiente e das imensas desigualdades econômicas que presenciam no seu dia-dia e em que vivem.
Assim como ocorreu, quando esteve aqui, com o escritor Leonardo Padura, de O homem que amava os cachorros, Ernesto Daranas, com o seu vigoroso filme, parece não ter receio das tentativas de ser utilizado e manipulado pelas forças de direita que se esmeram na demonizarão contínua – hoje, já ridícula – de qualquer aspecto que se relacione com a vida em Cuba. Ele nos fornece um painel crítico, porém honesto, da atual e complexa realidade socioeconômica do seu país nesta nova fase, da transição, da travessia para uma abertura maior para o mundo.
Numa escola de Havana vem afirmar a tradição cinematográfica cubana, ainda pouco conhecida fora, com suas plateias fieis, (há cinemas por todas as províncias da ilha) e cineastas formados pela célebre Escuela de San Antonio de los Baños onde vários diretores brasileiros lecionaram, e do ICAIC, o Instituto Cubano de Radio y Televisión.
“As inquietações que animam Conducta vêm das experiências dos garotos que trabalham no filme, moradores, eles próprios, dos bairros de Habana Vieja e Serrano. Outras vêm de reminiscências autobiográficas como a minha loucura, quando menino, de nadar até a boia, na baía, defronte ao Malecón,” diz o diretor. Experiências, travessuras e transgressões de qualquer criança. Seja no Bronx, no Capão Redondo, na Maré.
Em suma: é conveniente que o que se passa numa escola da capital cubana sirva de informação aos docentes, aos professores. O filme poderia ser apresentado em todos os sindicatos e órgãos de classe e seguido de debates e discussões, o que fará robustecer e atualizar a reflexão daqueles que conduzem as ações nas salas de aula das escolas públicas e privadas, confrontados como estão agora com a nova realidade ameaçadora da redução da maioridade penal – criminosa forma de violação da infância e da adolescência.
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