quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A imprensa! Que quadrilha!


(Sobrado da esquina da Riachuelo com Rezende, onde talvez Lima Barreto tenha morado, em criança, com seu pai e irmãos).

Como diria o Manoel dos secos & molhados, estou a reler toda a obra de Lima Barreto. Li também a sua biografia, escrita por Francisco de Assis Barbosa. Ele estudou na rua do Rezende (onde eu morei, na Lapa, bairro do centro do Rio de Janeiro, e passava as tardes na biblioteca nacional, que na época funcionava no prédio hoje ocupado pela Escola Federal de Música, no Passeio. Quando a situação apertou, após o adoecimento de seu pai, Lima alugou uma casa para sua família, no subúrbio, e passou num concurso para um emprego público.
Lima Barreto me intriga. Sua obra é muito irregular. Está longe de ser um gênio da técnica literária, como Machado de Assis. Por que, então, Lima Barreto é colocado, por quase todos os críticos, apesar de tantos defeitos, como o segundo maior escritor brasileiro do início do século XX, superado apenas pelo hour concours Machadão? Por que não José de Alencar? Por que não tantos outros, com obras muito mais impecáveis, do ponto de vista técnico, mais coesas, mais "trabalhadas" ?
Pensando nisso, pus-me a reler a obra de Lima e, no momento, percorro as páginas de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Acho que encontrei algumas pistas. Lima é sincero. Suas páginas exalam uma dor real. Talvez seja o primeiro escritor brasileiro a romper as barreiras formais para realizar uma literatura moderna, com mais despojamento e, sobretudo, mais verossimilhança e autenticidade emocional. Há trechos do Isaías Caminha que parecem sair diretamente do coração torturado de Lima.
Esse livro, conforme sabemos hoje através dos dados biográficos à nossa disposição, e como se pode depreender de sua própria leitura, nasceu de um profundo sentimento de revolta, em Lima, contra a imprensa brasileira de sua época, considerada por ele racista, reacionária, despreparada, e demais epítetos similares, que encontramos em abundância aplicados aos personagens- jornalistas do romance.
Vamos a um trecho:

A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba Roxa ressuscitasse, só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; (...) um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda prova... E assim dominam tudo, (...) fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação. Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos parvos, imorais e bestas... (...) E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção de mediocriades (...).

O responsável por esse monólogo é um dos personagens do livro, mas está claro que a voz por trás é de Afonso Henriques Lima Barreto.
É importante notar que o lançamento desse livro, e mesmo a opção de Lima em fazer uma crítica virulenta à Imprensa já em sua primeira obra literária, consistiu num erro estratégico fatal para o escritor. E digo isso porque Lima tinha outro livro escrito, mas decidiu lançar esse primeiro justamente por achar que a sua virulência causaria uma polêmica positiva. Ele queria chocar e, com isso, vender muitos exemplares. Mas subestimou sobejamente seus adversários. Os jornais fecharam-lhe as portas de forma definitiva e fizeram um pacto de silêncio sobre sua pessoa e suas obras. Tornou-se uma persona non grata na mídia nacional e vários amigos se afastaram, receiosos de que seu inevitável ostracismo pudesse contaminá-los.
A partir de então, Lima Barreto cai, literalmente, na marginalidade. Abandona os cafés chiques onde bebia uísque e cerveja com seus amigos mais bem colocados, e passa a frequentar botequins populares e a beber cachaça. À diferença do Machadão, sempre um funcionário público exemplar, Lima talvez tenha sido, nesse quesito, o pior exemplo na história nacional. Faltava ao trabalho sistematicamente, alegando doenças ou depressão, e afundava-se numa boemia violenta e triste, na qual passava dias e dias bebendo cachaça pelos bares, até cair e dormir no chão, como um mendigo. Por sorte teve chefes tolerantes e pode contar com inúmeras licenças médicas, de forma que, mesmo após meses de afastamento, por conta de seu alcoolismo severo e da doença mental de que foi acometido ao final da vida, continuou recebendo seu ordenado.
Apesar da vida desregrada, Lima conseguia tempo para escrever em profusão. Segundo seu principal biógrafo, Francisco de Assis, Lima escrevia rápido, com pressa, ansioso, como que ciente da brevidade de sua vida. Produziu uma obra considerável para alguém morto aos 41 anos. O ostracismo imposto pela grande mídia fê-lo mergulhar de cabeça na imprensa alternativa e proletária. Fundou jornais e revistas de vida efêmera, como é de praxe nesse tipo de empreendimento.
Voltando ao Isaías Caminha, há um outro trecho que gostaria de citar:

Pelos longos anos que estive na redação do O Globo, tive a ocasião de verificar que (...) a submissão dos subalternos ao diretor de um jornal só deve ter equivalente na administração turca. É de santo o que ele faz, é de sábio o que ele diz. Ninguém mais sábio e poderoso do que ele na terra.

É, meus queridos. Só mesmo o valente Lima Barreto para fazer uma crítica violenta aos jornais mais importantes da época (ele irá, ao longo do livro, espinafrar outros jornais e jornalistas) . Satirizar violentamente os próprios donos dos jornais. E isso num tempo onde o escritor não tinha internet para se defender. Existia imprensa alternativa, mas eram, naturalmente, iniciativas desprovidas de capital e com circulação quase ridícula.
O primeiro jornal que o protagonista conhece é O Globo (jornal fictício, o real seria fundado apenas em 1925; o Globo e o diretor ao qual o narrador se refere são, na verdade, o Correio da Manhã e seu proprietário, Edmundo Bittencourt), para onde vai atrás de um emprego que um dos jornalistas, que conhecia, havia lhe prometido. Caminha está sem comer há dois dias e espera seu amigo, que estava fora da redação naquele instante. Ouve as conversas dos jornalistas. E o narrador (o próprio personagem, mais velho), enquanto isso, faz comentários sobre a fundação daquele jornal. Esse é um trecho interessante também, mas não copiei. Ele diz que O Globo fora criado há pouco tempo, pela iniciativa de um playboy nunca antes vinculado ao jornalismo ou à literatura. E logo chama a atenção do público pela virulência com que passa a atacar o governo e as autoridades. A redação do Globo, diz o narrador, funcionava com um pequeno exército. O general (o dono do jornal) escolhia suas vítimas entre as espécimes da classe política e ordenava que seus soldados disparassem impiedosamente contra o alvo. Todos trabalhavam com esse objetivo, inclusive os comediantes, ou chargistas, que se encarregavam de aplicar o tiro de misericórdia na vítima já combalida, em retirada.

Enfim, parece que a imprensa da época de Lima não mudou muito de lá pra cá. Durante a recente crise que assolou o mundo, nossos jornalistas babaram de euforia. A Miriam Leitão, que só por estar de férias faz o céu ficar mais azul no Brasil, entrevistou, no auge da crise, o tal José Pastore, que afirmou que o Brasil deveria perder este ano cerca de 1 milhão de empregos. Uma amiga minha, que trabalhou 12 anos no Estadão, riu quando eu falei isso, porque ela me contou que todo mundo entrevistava o Pastore, o cara mais conservador que ela conhecia. Pois bem, a expectativa do governo e do mercado agora é de que o Brasil CRIE um milhão de empregos esse ano. Mas ninguém vai lá cobrar explicação do Pastore, que forma, junto com Marco Antônio Vila e Roberto Romano, a tríade dos sábios que a imprensa entrevista sempre que precisa alguém para corroborar suas teses pré-fabricadas e atacar o governo Lula.
E agora, para encerrar o post, uma matéria, minha mesmo, acompanhada de tabela e gráfico, sobre os números do Caged sobre o emprego no Brasil em agosto, divulgados hoje.
O Ministério do Trabalho divulgou os dados do emprego em agosto. Segundo o Cadastro Geral do Emprego (Caged), houve um volume de empregos admitidos, em agosto, da ordem de 1,457 milhão de postos de trabalho. Considerando as demissões, o saldo em agosto ficou positivo em 242.126 postos. Ou seja, o Brasil emerge, nos estertores da maior crise econômica desde a II Guerra, com um mercado de trabalho ainda maior do que aquele com que entrou.
Para efeito de comparação, observe os meses de agosto dos últimos quatro anos do governo FHC, com os últimos quatro anos de Lula. Parece que falamos de países diferentes. A geração de empregos na era FHC foi medíocre, porque o governo era incompetente. A fama de "bons gestores" dos tucanos é a maior falácia da histórica republicana nacional. Eles deixaram o país de joelhos, pedindo esmolas aos Estados Unidos. E isso por várias razões. Por isso, sempre que você ouvir falar que Lula deu "continuidade" à política econômica, não acredite, e rebata com os seguintes argumentos:

1) O governo passou a investir muito dinheiro na base da pirâmide social, dinamizando um vasto segmento de cidadãos antes excluídos do mercado de consumo. Pessoas que não tinham dinheiro para adquirir alimentos, passaram a tê-lo, e isso faz muita diferença em áreas carentes.

2) Houve uma política muito mais agressiva de redução de juros, os quais já atingiram o patamar mais baixo das últimas décadas.

3) Valorização do salário mínimo, através de decisão política do próprio presidente da República, o que permitiu uma relevante elevação do poder aquisitivo dos trabalhadores. O salário mínimo, cotado a 56 dólares no apagar das luzes do governo FHC, deverá saltar, ao final do governo Lula, para 266 dólares. Isso é quase inacreditável. É difícil achar gente que acreditasse, em 2002, que o salário mínimo pudesse ser multiplicado por cinco, em oito anos, sem quebrar o país ou causar um desemprego maciço, ou incentivar a informalização do trabalho. Pois bem, o salário mínimo cresceu 5 vezes, houve uma geração maciça de empregos e a taxa de informalidade no Brasil vem caindo a um ritmo acelerado.

4) Democratização do crédito, através de diversas medidas: criação do crédito consignado; aumento do crédito pelos bancos públicos, ampliação de carteiras, etc.

5) Aumento das verbas destinadas à agricultura familiar.

Bem, não dá para listar tudo aqui. Esse post é só para indicar como é falso e capcioso o argumento de que o governo Lula apenas "deu continuidade" . É falta do que falar. Lula não mudou a moeda, manteve uma política monetária prudente e conservadora, e deixou o câmbio livre. Mas nem isso pode ser chamado de continuidade, já que FHC fez uma gestão cambial extremamente temerária e inclusive golpista - pois segurou, a custa de dezenas de bilhões de nossas reservas internacionais, um câmbio artificial, apenas para evitar uma crise que atrapalhasse a sua re-eleição. Uma reeleição, sempre é bom lembrar, que por si só já era um golpe de Estado, já que ele patrocinou a mudança nas regras eleitorais para si mesmo.
A classe média, no entanto, continua repetindo o mantra da continuidade, disseminado pela mídia, com a pachorra de um papagaio. Não é possível, porém, que o bom senso dessas pessoas esteja tão destruído que pretendam desviar os olhos a todas as evidências.
Os gráficos prometidos (me deu uma trabalheira danada compilar e editar da forma simplificada como está).



Um comentário:

  1. dos textos que tenho lido nesse site, o que fala sobre Lima Barreto é o que mais gostei. Lembrar de Lima Barreto e ser justo em apreciar sua grandeza, é um feito respeitável ainda nos dias de hoje. Lima nasceu em 13 de maio e filho quase não reconhecido, montou-se em arquétipos singulares, trapeziando entre uma glória que não amava e a ruína certa, para os que esbugalham os olhos e escrevem o que vem, sem tinturas. "O homem que falava javanês" de tão bom chega a ser profético, o que nos faz pensar e aproveitar a rima, sobre nosso presente patético.

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