sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Desinventando a democracia

A investida contra a Grécia é apenas um último episódio de uma longa história de destruição do aparelho produtivo em benefício de uma elite financeira.
Pode ser que a Grécia esteja financeiramente falida; a troika está politicamente falida. Aqueles que perseguem esta nação empunham poderes ilegítimos e não democráticos: poderes tais que ora afligem todos nós.
Consideremos o Fundo Monetário Internacional. A distribuição de poder em seu seio é perfeitamente costurada: a decisões do FMI requerem uma maioria de 85%, e os Estados Unidos dispõem de 17% dos votos. É uma instituição controlada pelos ricos e governa os pobres em nome deles. O FMI faz hoje com a Grécia o que já fez a outras pobres nações, Argentina a Zâmbia. Seus programas de ajustamento estrutural têm forçado vários governos eleitos a reduzir a despesa pública, destruindo a saúde, a educação e outros meios através dos quais os desgraçados da terra podem melhorar suas vidas.
O mesmo programa é imposto independentemente das circunstâncias: cada país colonizado pelo FMI deve manter o controle da inflação acima de qualquer outro objetivo econômico; logo depois deve remover barreiras ao comércio e ao fluxo de capital; liberalizar o sistema bancário; reduzir a despesa pública em tudo, menos no pagamento de juros e dívidas; e privatizar os ativos que devem ser vendidos a investidores estrangeiros.
Servindo-se da ameaça de sua autorrealizável profecia (os mercados financeiros avisam que os países que não se submeterem às suas vontades estão condenados), o FMI tem forçado governos a abandonar políticas progressistas. Praticamente sozinho, ele produziu a crise financeira asiática de 1997: forçando governos a remover seus controles de capital, as moedas ficaram expostas a ataques de especuladores financeiros. Só países como Malásia e China, que se recusaram a cair nessa, escaparam da crise.
Consideremos o Banco Central Europeu. Como muitos outros bancos centrais, ele goza de “independência política”. Isso não quer dizer que ele esteja livre da política; isso quer dizer apenas que ele está livre da democracia. É um banco governado pelo setor financeiro, cujos interesses este mesmo banco está constitucionalmente obrigado a defender através de sua meta de inflação em torno de 2%. Sempre consciente de onde reside o poder, ele excedeu seu mandato, infligindo deflação e um épico desemprego entre os membros pobres da zona do euro.
O Tratado de Maastricht, estabelecendo a União Europeia e o euro, foi construído sobre uma ilusão letal: uma crença de que o Banco Central Europeu podia fornecer a única governança econômica comum requerida pela união monetária. Isso veio de uma versão extremista do fundamentalismo de mercado: se a inflação for mantida baixa, imaginam seus autores, a magia dos mercados resolveria todos os outros problemas econômicos e sociais, tornando a política algo obsoleto. Estas pessoas sóbrias, bem vestidas e sérias, que agora se referem a si mesmas como os únicos adultos no salão, são desmentidas como utópicos fantasistas, devotos de culto econômico fanático.
Tudo isso nada mais é que um recente capítulo na longa tradição de subordinação do bem-estar humano ao poder financeiro. A austeridade hoje imposta à Grécia, por mais brutal que nos pareça, é ainda moderada em comparação a versões anteriores. Tomemos, por exemplo, as fomes a na Irlanda e na Índia, ambas exacerbadas (causada, no caso da Índia) pela doutrina então conhecida como laissez-faire, e hoje conhecida como fundamentalismo de mercado ou neoliberalismo.
No caso da Irlanda, um oitavo da população foi morta – poder-se-ia dizer assassinada – no fim da década de 1840, parcialmente pela decisão britânica de impedir a distribuição de alimentos, manter a exportação de grãos e não fornecer nenhuma ajuda aos pobres. Tais políticas contradiziam a Santa Doutrina segundo a qual nada deve deter a mão invisível.
Quando a seca se abateu sobre a Índia em 1877 e 1878, o governo imperial britânico insistiu em exportar uma quantidade recorde de grãos, provocando uma fome de massas que matou milhões de pessoas. A Lei Contra Contribuições Caritativas de 1877 proibiu “doações privadas que potencialmente interferiam na fixação de preços de grãos pelo mercado com pena de encarceramento para os doadores”. O único paliativo autorizado era o trabalho forçado em campos, onde a ração alimentar era inferior àquela dos internos de Buchenwald. A mortalidade mensal naqueles campos em 1877 equivalia a uma média anual de 94%.
Como explicou Karl Polanyi em A Grande Transformação, o padrão ouro – o sistema autorregulado no coração da economia de laissez-faire – impedia os governos no século 19 e no princípio do século 20 de aumentar as despesas públicas ou estimular o emprego. Isso forçava a manter a maioria pobre, enquanto os ricos disfrutavam de uma era dourada.
Havia poucos meios disponíveis para conter o descontentamento público além de sugar riqueza das colônias e promover um nacionalismo agressivo. Este foi um dos fatores que contribuíram para a Primeira Guerra Mundial. A retomada do padrão ouro por muitas nações depois da guerra exacerbou a Grande Depressão, impedindo os bancos centrais de aumentar o suprimento de moeda e financiar déficits. Você teve talvez alguma esperança de que os governos europeus se lembrariam do resultado.
Hoje em dia, os equivalentes ao padrão ouro são abundantes. Em dezembro de 2011, o Conselho Europeu concluiu um novo pacto fiscal impondo a todos os membros da zona do euro uma diretriz segundo a qual “todos os orçamentos dos governos devem ser equilibrados ou mostrar superávit”. Esta diretriz, que deve ser convertida em leis nacionais, “contém um mecanismo de correção automática que pode ser disparado em caso de comportamento anômalo”. Isso ajuda a explicar o horror senhorial com o qual tecnocratas não eleitos reagiram à ressurgência da democracia na Grécia. Não garantiram eles que aquilo era uma escolha ilegal? Tais ditames significam que a única saída democrática possível para a Europa hoje é o colapso do euro: goste-se ou não, todo o resto é tirania em fogo brando.
É duro para nós de esquerda admitir, mas o fato é que Margaret Thatcher salvou o Reino Unido do despotismo. A união monetária europeia, previu Thatcher, garantiria que as nações pobres não fossem ajudadas, “o que seria devastador para suas economias ineficientes”.
Mas apenas, ao que parece, para que seu partido suplantasse aquele despotismo com uma tirania prata da casa. George Osborne propôs uma obrigação legal de superávit orçamentário que supera as exigências da diretriz da zona do euro. Os trabalhistas prometeram um dispositivo de responsabilidade orçamentária, que embora menos severo, tinha intenções similares àquelas dos conservadores. Em todo caso, os governos negam a si mesmos a possibilidade de mudança. Em outras palavras, eles agem para entravar a democracia.
Assim tem sido nos dois últimos séculos, com exceção da pausa keynesiana de 30 anos. O esmagamento da escolha política não é um efeito colateral desta crença utópica, mas um de seus componentes necessários. O neoliberalismo é inerentemente incompatível com a democracia, pois as pessoas sempre se rebelarão contra o arrocho e a tirania fiscal que o primeiro prescreve. Alguém tem de ceder, e este alguém tem de ser o povo. Esta é a verdadeira rota da servidão: desinventar a democracia em benefício de uma elite.

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