quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Toda a História em um Malecón

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Com a normalização das relações com Cuba, os norte-americanos querem ganhar espaço, ou ao menos não perder mais poder relativo com relação à China.
Por um lado, era possível ver os carrões dos anos 50, por outro, o Caribe incrivelmente celeste. Bem ali, onde estava discursando ontem [15/8] o secretário de Estado norte-americano John Kerry termina o Malecón que começa na cidade velha de Havana, e que, por algum mistério de luz, forma e cor do mar e dos muros, oferece uma das orlas mais belas do mundo.
Cubanos e estadunidenses jamais economizaram símbolos. Nem o conflito aberto, nem o processo de pacificação atual. Para cada país, o momento que vivem hoje é novidade, mas cada um busca, ao mesmo tempo, marcar as continuidades. Jim, Mike e Larry, como Kerry ser referiu a James Tracy, Mike East e Larry Morris, içaram a bandeira das listras e estrelas, com o hino soando ao fundo. São os mesmos que, em 1961, então marines de pouco mais de vinte anos, foram os encarregados de guardar o pavilhão.
Parado no pátio do edifício dos Estados Unidos, que desde ontem voltou a ser a Embaixada Estadunidense em Cuba, Kerry pode contemplar um verdadeiro monte de 138 mastros, um por cada ano da história cubana desde a independência até a inauguração desse cenário, em 2006. Cada ano representava, segundo seus desenhadores, um ano da árdua história entre Cuba e as potências coloniais. É notório que 138 anos são mais que os 54 de bloqueio, ou os 56 de revolução. Convém fazer as contas: o primeiro mastro é o de 1868, o ano em que o empresário açucareiro Carlos Manuel Céspedes del Castillo liberou seus próprios escravos e se levantou contra o poder colonial da Espanha. Em 1868, não existia a União Soviética, e Céspedes não era um leninista (não poderia ser, porque Lenin só nasceria em 1870), mas sim um maçom libertário. Quer dizer que o cenário de ontem, ao menos em Havana, não marca somente o fim de um resquício da Guerra Fria entre Moscou e Washington. Neste jogo de símbolos e mensagens, os cubanos parecem ter decidido mostrar que a revolução cubana de Fidel Castro é um capítulo dentro de uma prolongada luta nacional. Primeiro contra a Espanha, logo, desde 1902, contra os Estados Unidos. Uma luta que, com a normalização, entrou num novo e diferente período, mas que ainda conserva suas tensões.
Normalmente, ali flameiam bandeiras negras com estrela branca, consideradas um símbolo da luta contra as agressões terroristas. Próximo às bandeiras, está a Tribuna Anti-Imperialista José Martí, um lugar reconhecido por suas construções de aço. Inaugurado no ano 2000, pode chegar a receber até 150 mil pessoas, se somados todos os espaços abertos. Tanto a tribuna como o monte tiveram seu objetivo: foram construídos junto ao edifício do que até ontem foi a Seção de Interesses dos Estados Unidos em Cuba, que o processo de normalização iniciada em dezembro passado por Raul Castro e Barack Obama transformou outra vez numa embaixada. No pátio da construção estadunidense, foram postos cartazes para criticar a situação das liberdades individuais na Ilha. Do outro lado, os atos populares desenvolviam seus próprios cantos e gritavam denúncias a respeito do bloqueio, considerado por eles o genocídio mais longo da História.
Nesse jogo de símbolos, Kerry não pode selecionar uma lembrança melhor para os ouvidos dos líderes cubanos. No discurso que pronunciou, sob o calor sufocante de agosto, disse que esteve em Hanói na semana passada, durante a comemoração dos 40 anos do momento em que o último soldado norte-americano se foi do Vietnã.
“Para Cuba, teria sido melhor uma democracia genuína, mas não seria realista normalizar as relações para transformar tudo a curto prazo”, disse Kerry. Não deixou de mencionar o seu país como o paladino da liberdade e da democracia, mas indicou que o modo de governar deveria ser decidido pelos próprios cubanos.
O Vietnã, assim como Cuba, é outro país atingido pelas guerras anticoloniais que não se transformou numa democracia liberal, mesmo depois da implosão de sua aliada União Soviética, em 1991, e costuma ser o modelo ao qual os dirigentes cubanos apelam diante dos questionamentos. Eles gostam do modo como os vietnamitas reciclaram sua economia, transformando-a num modelo misto, com um setor privado cada vez mais amplo, sem o risco de um colapso como o que houve com a perestroika e a glasnost de Mikhail Gorbachov. No caso cubano, o desafio é, entre outros, como criar desenvolvimento produtivo solidário, que permita reverter o esgotamento da hipertrofiada máquina estatal sem mandar os cubanos para o olho da rua, nem arruinar o sucesso de ter se transformado no único país da América onde as crianças não trabalham.
Um editorial do The New York Times publicado ontem [15/8] colocou a normalização dentro de um contexto regional: “Na América Latina, a diplomacia tranquila rende seus frutos”. Um exemplo seria a reaproximação com o governo boliviano de Evo Morales, que, em 2013, expulsou a Agência Norte-americana de Ajuda Internacional, a US AID, por supostas manobras de desestabilização. Outro exemplo, segundo o diário, é a melhora dos vínculos com o Brasil. No caso da Venezuela, menciona que um assessor de Kerry, Thomas Shannon, começou a manter diálogos discretos para diminuir a rispidez da relação. Shannon és um negociador realista que antes foi embaixador no Brasil, e encarregado de assuntos latino-americanos no Departamento de Estado. Segundo The New York Times, a maior abertura com Cuba poderia fortalecer um processo de cooperação “numa região que está sendo sistematicamente trabalhada pela China”, país que “financia vários projetos e expandiu seu comércio de maneira substancial” na América Latina.
Com a normalização, os norte-americanos querem ganhar espaço, ou ao menos não perder mais poder relativo com relação à China. Os cubanos, que querem viver melhor sem resignar as conquistas, necessitam ganhar tempo.
Política pura. Um cenário sem guerra, afortunadamente, e cheio de complexidades. Um cenário que para países como a Argentina e seus quatro sócios do Mercosul obriga a coordenar mais, e não menos, suas políticas para preservar a diversificação dos mercados e um maior grau de autonomia, que conseguiram a partir de um menor peso da dívida. Porque, além disso, os cubanos não querem ficar sozinhos jogando com o grandalhão no Malecón. Neste mundo, quem deixa o outro sozinho também termina sozinho.

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