Bernardino, preso aos 12 anos e seviciado, motivou mudança no código penal
Em 12 de outubro de 1927, no Palácio do Catete, o presidente Washington Luiz assinava uma lei que ficaria conhecida como Código de Menores. Hoje, passados quase 90 anos, a canetada do último presidente da República do Café com Leite é alvo das mais exaltadas discussões no governo, no Congresso e na sociedade.
Foi o Código de Menores que estabeleceu que o jovem é penalmente inimputável até os 17 anos e que somente a partir dos 18 responde por seus crimes e pode ser condenado à prisão. O que agora está em debate no país é a redução da maioridade penal para 16 anos.
O código de 1927 foi a primeira lei do Brasil dedicada à proteção da infância e da adolescência. Ele foi anulado na década de 70, mas seu artigo que prevê que os menores de 18 anos não podem ser processados criminalmente resistiu à mudança dos tempos.
É justamente a mesma idade de corte que hoje consta da Constituição e do Código Penal, além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — uma espécie de filhote do Código de Menores que nasceu em 1990 e completará 25 anos na segunda-feira (13).
A pioneira lei, que foi construída com a colaboração do Senado, marcou uma inflexão no país. Até então, a Justiça era inclemente com os pequenos infratores. Pelo Código Penal de 1890, criado após a queda do Império, crianças podiam ser levadas aos tribunais a partir dos 9 anos da mesma forma que os criminosos adultos.
Notícias criminais protagonizadas por crianças e adolescentes eram corriqueiras na imprensa. Em julho de 1915, o jornal carioca A Noite noticiou: “O juiz da 4ª Vara Criminal condenou a um ano e sete meses de prisão um pivete de 12 anos de idade que penetrou na casa número 103 da Rua Barão de Ubá, às 13h, e da lá furtou dinheiro e objeto no valor de 400$000”.
A mão policial também era pesada. Até o surgimento do Código de Menores, os pequenos delinquentes recebiam o mesmo tratamento dispensado a bandidos, capoeiras, vadios e mendigos. Uma vez capturados, todos eram atirados indiscriminadamente na cadeia.
Em março de 1926, o Jornal do Brasil revelou a estarrecedora história do menino Bernardino, de 12 anos, que ganhava a vida nas ruas do Rio como engraxate. Ele foi preso por ter atirado tinta num cliente que se recusara a pagar pelo polimento das botinas. Nas quatro semanas que passou trancafiado numa cela com 20 adultos, Bernardino sofreu todo tipo de violência. Os repórteres do jornal encontraram o garoto na Santa Casa “em lastimável estado” e “no meio da mais viva indignação dos seus médicos”.
Reformatórios
Em 1922, uma reforma do Código Penal elevou a maioridade de 9 para 14 anos. Com o Código de Menores de 1927, chegou-se aos 18 e a prisão de crianças e adolescentes ficou proibida. Em seu lugar, teriam de ser aplicadas medidas socioeducativas, como se chamam hoje.
No caso dos delinquentes com idade entre 14 e 17 anos, o destino seria uma escola de reforma (ou reformatório), onde receberiam educação e aprenderiam um trabalho. Os menores de 14 anos que não tivessem família seriam mandados para a escola de preservação, uma versão abrandada do reformatório. Os mais novos com família poderiam voltar para casa, desde que os pais prometessem às autoridades não permitir que os filhos reincidissem.
Extenso e minucioso, o código se dividia em mais de 200 artigos, que iam além da punição dos pequenos infratores. Normatizavam desde a repressão do trabalho infantil e dos castigos físicos exagerados até a perda do pátrio poder e a criação de tribunais dedicados exclusivamente aos menores de 18 anos.
No Brasil da virada do século 19 para o 20, uma parcela considerável da população vivia na miséria. Com o fim da escravidão, em 1888, os negros e suas famílias se viram abandonados de uma hora para a outra, elevando as estatísticas da pobreza. A ainda tímida industrialização atraía gente do campo, mas não conseguia absorver toda a mão de obra disponível. As cidades inchavam,e o desemprego e a criminalidade disparavam.
Às crianças e aos adolescentes restavam dois caminhos. Ou trabalhavam, submetidos a serviços pesados ou perigosos, jornadas exaustivas e pagamentos irrisórios. Trabalhadores imberbes eram vistos operando máquinas nas indústrias, vendendo bilhetes de loteria nas ruas e participando das colheitas nas fazendas.
Ou então perambulavam pelas ruas das cidades grandes, como Rio e SãoPaulo, agrupados em “maltas”, como se dizia, cometendo roubos, aplicando golpes, pedindo esmolas ou simplesmente vadiando. Naquela altura, as escolas públicas eram raras e estavam reservadas para os filhos das classes abastadas.
A Gazeta de Notícias, numa reportagem de fevereiro de 1929, explicou o problema das ruas para as crianças: “Aí aprendem coisas que não deveriam ou não precisariam saber: encontram más companhias que os desencaminham, adquirem vícios e maus costumes, deslizam para a vadiagem, a mendicidade, a libidinagem, a gatunagem e outras formas de delinquência”.
Documentos preservados no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam que os senadores foram protagonistas no longo processo que culminou na criação do Código de Menores de 1927.
Um dos pioneiros da causa infantil foi o senador Lopes Trovão (DF). Ainda no final do século 19, ele subiu à tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio (que tinha o status de Distrito Federal), para dizer que era inaceitável a apatia do poder público diante das crianças abandonadas e delinquentes.
— Ao Estado se impõe lançar olhos protetores, empregar cuidados corretivos para a salvação dos pobres menores que vagueiam a granel, provando nas palavras que proferem e nos atos que praticam não ter família. Se a têm, esta não lhes edifica o coração com os princípios e os exemplos da moral — discursou ele em setembro de 1896.
Patriarcalismo
Para o senador, o Estado precisava ter poder para retirar de casa e internar em escolas especiais as crianças que não recebessem dos pais a devida educação moral. Segundo ele, vários países avançados já subtraíam o pátrio poder das famílias negligentes, como os Estados Unidos, a França e a Inglaterra.
Lopes Trovão acreditava que os cidadãos de sua geração já estavam corrompidos e não seriam capazes de tirar o Brasil do atraso social e conduzi-lo à civilidade. Para ele, a solução seria apostar todas as fichas nas crianças.
— Temos uma pátria a reconstituir, uma nação a formar, um povo a fazer. Para empreender essa tarefa, que elemento mais dúctil e moldável a trabalhar do que a infância? São chegados os tempos de trabalharmos na infância a célula de uma mocidade melhor, a gênese de uma humanidade menos imperfeita. Preparemos na criança o futuro cidadão capaz de efetuar a grandeza da pátria dentro da verdade do regime republicano.
Muito embora o senador Lopes Trovão já fosse uma figura respeitada por ter militado na linha de frente dos movimentos abolicionista e republicano, o projeto de Código de Menores que ele apresentou em 1902 terminou engavetado.
O senador Alcindo Guanabara (DF) foi outro expoente na defesa da “infância desvalida”. Em agosto de 1917, ele fez um enfático pronunciamento em que buscou convencer os colegas da necessidade urgente de um Código de Menores:
— São milhares de indivíduos que não recebem senão o mal e que não podem produzir senão o mal. Basta de hesitações! Precisamos salvar a infância abandonada e preservar ou regenerar a adolescência, que é delinquente por culpa da sociedade, para transformar essas vítimas do vício e do crime em elementos úteis à sociedade, em cidadãos prestantes, capazes de servi-la com o seu trabalho e de defendê-la com a sua vida.
O projeto que o senador redigiu em 1917 também acabou sendo arquivado. Em 1906, como deputado federal, Alcindo Guanabara já havia apresentado uma proposta semelhante, que tampouco avançou. Outra tentativa de criação do Código de Menores foi feita em 1912, pelo deputado João Chaves (PA).
Desde o discurso de Lopes Trovão, passaram-se mais de 30 anos até que o Código de Menores fosse aprovado. Foram vários os motivos da demora. Um deles, segundo estudiosos do tema, foi a 1ª Guerra Mundial (1914–1918), que reduziu a mera frivolidade qualquer discussão em torno da infância. Outro entrave foi o patriarcalismo.
— Os senadores e deputados faziam parte daquela sociedade patriarcal e não queriam perder o poder absoluto que tinham sobre suas famílias até então. O Código de Menores mudava essa realidade, permitindo que o Estado interviesse nas relações familiares e até tomasse o pátrio poder — explica a historiadora Sônia Camara, autora do livro Sob a Guarda da República (Quartet Editora), que trata das crianças da década de 1920.
O historiador Eduardo Silveira Netto Nunes, estudioso da evolução das leis da infância, vê um terceiro motivo. De acordo com ele, uma parcela dos parlamentares tinha aversão às propostas de Código de Menores porque a construção dos reformatórios, escolas e tribunais previstos na nova lei exigiriam o aumento dos impostos.
— Até então, o governo estava ausente das políticas sociais. Sua atuação se resumia à repressão policial. O Código de Menores apareceu como o prenúncio do que viria a partir dos anos 30, com Getúlio Vargas, que transformaria o governo no grande administrador da sociedade e colocaria as políticas sociais como prioridade. Vargas, por exemplo, trouxe uma série de direitos trabalhistas.
Na entrada da década de 20, os obstáculos começaram a cair. No governo Epitácio Pessoa, o advogado e ex-deputado José Cândido Mello Mattos foi encarregado de reformular o projeto do senador Alcindo Guanabara e passou a conduzir o movimento. Por influência dele, o Congresso aprovou uma série de leis relativas à infância que abririam caminho para a criação do Código de Menores. Na época, a lei ficou conhecida como Código Mello Mattos.
Dia da Criança
A data da assinatura do Código de Menores, em 12 de outubro de 1927, havia sido escolhida pelo presidente Washington Luiz a dedo, para coincidir com os festejos do Dia da Criança, criado por decreto pouco antes por seu antecessor, Artur Bernardes.
A nova lei, em resumo, determinava ao governo, à sociedade e à família que cuidassem bem dos menores de 18 anos.
Um dos artigos proibiu a chamada roda dos expostos, a medieval roleta embutida na parede externa de instituições de caridade que permitiam à mulher — solteira, quase sempre — abandonar anonimamente o filho recém-nascido. Com o código, a mãe teria que primeiro providenciar a certidão de nascimento do bebê para depois poder entregá-lo aos funcionários do orfanato, onde se lavraria um registro, que poderia ser secreto se fosse esse o desejo da mulher.
O trabalho infantil era fartamente explorado. Ainda que pouco produtiva, era uma mão de obra abundante e barata. A partir de 1927, as crianças de até 11 anos não puderam mais trabalhar. A atividade dos adolescentes entre 12 e 17 anos ficou autorizada, porém com uma série de restrições. Eles, por exemplo, não poderiam trabalhar durante a noite nem ser admitidos em locais perigosos, como minas e pedreiras.
De acordo com a historiadora Maria Luiza Marcilio, autora do livro História Social da Criança Abandonada (Editora Hucitec), o Código de Menores foi revolucionário por pela primeira vez obrigar o Estado a cuidar dos abandonados e reabilitar os delinquentes. Ela, porém, faz uma ressalva:
— Como sempre acontece no Brasil, há uma distância muito grande entre a lei e a prática. O Código de Menores trouxe avanços, mas não conseguiu garantir que as crianças sob a tutela do Estado fossem efetivamente tratadas com dignidade, protegidas, recuperadas.
O sucessor da lei de 1927 foi o Código de Menores de 1979, criado pela ditadura militar. Depois, em 1990, veio o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os dois primeiros códigos, grosso modo, dirigiam-se apenas aos marginais. O ECA, por sua vez, vale para todas as crianças e adolescentes, independentemente da classe social. Antes, o foco das leis estava nas punições. Agora, nos direitos. Nos velhos códigos, o infrator capturado era punido automaticamente. Hoje, ele tem direito a ampla defesa e, para isso, conta com o trabalho dos defensores públicos.
O termo “menor”, que se popularizou na época do código de 1927, agora é abominado pelo meio jurídico. O ECA, em seus mais de 250 artigos, não o utiliza nenhuma vez. No lugar de “menor”, adota a expressão “criança ou adolescente”. Explica o historiador Vinicius Bandera, autor de um estudo sobre a construção do primeiro código:
— “Menor” é um termo pejorativo, estigmatizante, que indica anormalidade e marginalidade. “Criança ou adolescente” é condizente com os novos tempos. Remete à ideia de um cidadão que está em desenvolvimento e merece cuidados especiais.
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