“Pelo menos os colchões, Dr. Oswaldo... não queime os malditos colchões”
Suado diante dos dias quentes daquele final de primavera de 1904, e exasperado pela situação nas ruas, o Presidente Rodrigues Alves olhava para aquele médico a quem confiara a missão estratégica de combate à febre amarela, com olhos angustiados. Será que esse sanitarista genial e maluco, que descobrira e isolara o vírus da febre amarela, criando sua vacina, e que perseguia os ratos (o povo o chamava de “papa ratos”) não entendia que, para muitos cariocas o colchão que suas tropas incendiavam era único e queimá-lo provocava o rancor e a fúria?
Não, Oswaldo Cruz não entendia.
Para ele, saúde se fazia em campanha nos moldes militares. Campanha de Guerra.
Se o maldito vírus se escondia entre os farrapos dos quais os pobres escondiam seus corpos, ou nos colchões onde dormiam, a missão da campanha era simples: queimar os colchões, abater os ratos e mosquitos à tiros, e não podendo abater também os pobres, ao menos obrigá-los à vacinação.
No Brasil do início do século XX saúde era tratada como um fim político. Nem pensar em esclarecer os pobres. Eles estavam até sendo vacinados, para quê seriam necessários esclarecimentos?
Por isso, a resposta do Dr. Oswaldo foi um olhar indolente de quem entendia que tanto zelo do presidente da República, devia-se apenas ao fato da imagem do Brasil (e de seu governo) ser ridicularizada na Europa. Imagina, empresas de turismo chegavam a prometer em grandes cartazes de propaganda, levar seus fregueses à Buenos Aires sem passar pelos focos contaminados do Rio de Janeiro.
Mas enganavam-se ambos, médico e presidente ao diminuir as causas da revolta, caracterizando-a como algo esporádico e despolitizado.
A situação do Rio de Janeiro, no início do século XX, era precária. A população sofria com a falta de um sistema eficiente de saneamento básico. Este fato desencadeava constantes epidemias, entre elas, febre amarela, peste bubônica e varíola. A população de baixa renda, que morava em habitações precárias, era a principal vítima deste contexto.
Para piorar, Rodrigues Alves decidira urbanizar a capital do país, que deveria começar a ser a “cidade maravilhosa” e para isso velhas ruas foram alargadas, enquanto novas vias públicas invadiam bairros e vielas.
Adivinha quem teve suas casas desapropriadas (sem pagamento) e expulsos das áreas mais antigas de habitação? Isso mesmo, os pobres, gente que nem médico nem presidente conheciam muito bem.
Entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904, explodiu no Rio de Janeiro a Revolta da Vacina.
A parte mais pobre do povo desceu os morros, convicta da justiça de suas reivindicações, influenciada pelas conversas apaixonadas que rolavam no Boteco do Manduca, o mais popular Boteco da favela. O Manduca, analfabeto, mas bem informado e idealista, chegara a desfraldar uma bandeira da França na frente de seu estabelecimento, e juntos, emocionados pelo fervor do idealismo e da cachaça, botequeiro e freguesia cantaram a Marselhesa.
Povo e polícia se engalfinharam de forma violenta. Populares destruíram bondes, apedrejaram prédios públicos e espalham a desordem pela cidade.
Nos sete dias de revolta, muitas vezes Manduca promoveria o mesmo ato simbólico.
Juntos, aquele povo de um só colchão, que entendia de ratos de um jeito diferente do Dr. Oswaldo Cruz, aquele povo miserável, promoveria uma inacreditável união de esforços para por fim à campanha militar/sanitária desencadeada por um governo distante e mais preocupado com sua imagem e suas ruas alargadas.
Finalmente, em 16 de novembro de 1904, o presidente Rodrigues Alves, fazendeiro paulista que acabaria morrendo, ironicamente, vítima de uma epidemia (Gripe Espanhola, em 1918), revoga a lei da vacinação obrigatória.
A Revolta da Vacina talvez nunca tenha sido vista pela história oficial com a profundidade merecida. Até hoje é ensinada nos colégios como um momento apolítico de um povo ingrato que sequer percebia a importância e os benefícios da vacinação.
Suas causas, seus revoltosos, e claro, seu Manduca, botequeiro que recitava o hino da França, entendendo ser esse um momento solene de liberdade, igualdade e fraternidade, mereciam, pelo menos, um olhar mais crítico,mais humano e reconhecido.
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