De barco, esta repórter percorreu, das 11 às 15hs, cerca de 7 quilômetros do rio Tietê na região do Pantanal. Primeiro, em companhia do líder comunitário Francisco Amaro Gurgel, coordenador do Movimento em Marcha. Depois, com Pedro Guedes, da Associação dos Moradores da Vila da Paz e do Movimento Unificado dos Moradores da Várzea do Tietê.
Passamos pelo Jardim Romano, Vila Aimorés, Fazenda Biacica, Cotovelo do Pantanal, Pantanal, vilas São Martins, da Paz, das Flores e Chácara Três Meninas. Não choveu durante o trajeto. Mas a correnteza maior – inabitual nesse trecho – chamou nossa atenção.
“O nível do rio também está bem mais alto”, acrescentou o barqueiro Sérgio Silvério Ferz, que fizera o mesmo percurso 15 dias antes.
Guedes reforçou: “Realmente, o Tietê subiu. Aqui, ele costuma ser ‘manso’ mas hoje [23 de janeiro] não está nem um pouco”.
Mal sabíamos que eram primeiros os alertas de um novo infortúnio. Nas horas seguintes, o Tietê transbordou e o Pantanal inundou muito mais do que em 8 de dezembro de 2009. As águas avançaram sobre pontos até então livres de alagamentos. Entre eles, a avenida de ligação de São Paulo com Guarulhos pela Vila Any e a rua Gruta das Princesas, percorridos pela repórter no sábado anterior com Ronaldo Delfino, do Movimento de Urbanização da Legalização do Pantanal (as fotos abaixo são dele).
Ligação de São Paulo com Guarulhos pela Vila Any: em 16 de janeiro, sequinha, no dia 24...
Rua Gruta das Princesas, onde fica o Colégio estadual Flávio Augusto Rosa. A inundação do sábado, 23 de janeiro, alagou inclusive a escola.
“Saí de casa no sábado, às 2 da tarde, estava seco. Voltei às 7, com água no joelho”, conta Maria das Mercedes Cavalcanti, 55 anos, sete filhos, que mora há quatro quadras do CEU do Jardim Romano. “Liguei para cá às quatro e meia, a minha casa já estava enchendo, ela nunca inundou. A água chegou até a coxa. Hoje, ainda está no joelho.”
“Ainda está tudo cheio. Nunca vi isso. Um conhecido nosso, o ‘seo’ Antonio, acabou de sair daqui. Perdeu tudo”, lamenta Maria Lúcia Farias, esposa de Ronaldo. “No sábado, a casa dele que não tinha enchido antes ficou com mais de 1 metro de água. ‘Seo’ Antonio e a família saíram com a roupa do corpo”.
“A parte da rua onde eu moro já estava alagada desde dezembro, mas a minha casa, não. Porém, desde sábado, estamos com água em todos os cômodos. Ficamos ilhados. Tive de chamar um guincho para tirar o carro, se não estragaria”, indigna-se Gurgel. “Como é o que o governo do Estado de São Paulo deixa a comunidade nessa situação e não se manifesta?”
“Desde a madrugada de domingo, colegas ligam desesperados, com água na altura do peito”, relata Ronaldo. “Estamos sem saber o que fazer nem o que começou a acontecer a partir de sábado. Pela nossa experiência não são as chuvas. Ouvi dizer que abriram as comportas das barragens do Alto Tietê, mas ninguém nos alertou nada antes.”
“O Pantanal inundou, de novo, porque as barragens do sistema do Alto Tietê estão excessivamente cheias para o verão, e a Sabesp abriu as comportas, contribuindo para alagar ainda mais região”, denuncia o economista e ambientalista José Arraes. “É uma irresponsabilidade a Sabesp e o Daee terem deixado a cheias chegar, para começarem a descarregar água dos seus reservatórios. É um crime. É um erro tremendo de gerenciamento”
Há 13 anos as enchentes em Mogi das Cruzes, município da Grande São Paulo, levou o ambientalista a se interessar pela questão de recursos hídricos. Ajudou a solucionar o problema do seu bairro e não parou mais. Atualmente, é membro do Comitê da Bacia do Alto Tietê, do Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê e do conselho gestor da APA (Area de Proteção Ambiental) da várzea do Tietê.
Viomundo – O senhor já fez essa denúncia aos órgãos públicos?
José Arraes – Claro. Denunciamos à Sabesp e ao Daee [Departamento de Águas e Energia Elétrica], órgãos do governo do Estado de São Paulo, que as barragens do Alto Tietê estavam excessivamente cheias para o verão. Fizemos isso no final de 2009.
Viomundo – E aí?
José Arraes – Nenhuma providência foi tomada. Aliás, em 2009, duas coisas muito estranhas ocorreram no gerenciamento das barragens do Alto Tietê. No início do ano, a Sabesp e o Daee praticamente secaram o Tietê e encheram os reservatórios. Em Mogi das Cruzes, o rio ficou vários meses com apenas 20 centímetros de lâmina de água. No final do ano, as barragens estavam muito lotadas para a época. Há 13 anos acompanhamos esse processo e sabemos que o Daee e a Sabesp reservam cotas nas barragens, prevendo as cheias do verão. Em 2009, não fizeram isso. Resultado: chegamos a dezembro com a quase a totalidade das principais barragens cheias. Um absurdo!
Viomundo – Por que a Sabesp e o Daee mantiveram as barragens lotadas?
José Arraes – Eu desconfio de um destes esquemas. Primeiro: para não faltar água para a Região Metropolitana de São Paulo. Assim, pode ter havido determinação governamental para estarem na cota máxima. Segundo: a Sabesp e o Daee já estarem aumentando o volume das represas, visando aumentar a produção da Estação de Tratamento de Água Taiaçupeba de 10 metros cúbicos por segundo para 15 metros cúbicos por segundo (10m³/s para 15m³/s) . Terceira: a privatização do Sistema Produtor de Água do Alto Tietê – chamado SPAT. Hoje é um consórcio de empresas privadas que regula, administra, mantém e fornece as águas que estão represadas nessas barragens.
Viomundo – Por favor, explique melhor isso.
José Arraes – Existe um consórcio de empresas – entre elas, uma empreiteira conhecida na nossa região, a Queiroz Galvão –, que hoje gerencia as águas reservadas nas represas em uma parceria público-privada. Toda a água represada em todas as barragens do Sistema do Alto Tietê são gerenciadas por esse consórcio. Quanto mais cheias as represas, mais interessantes para o consórcio. Interesse comercial, nada mais do que isso.
Viomundo – Quer dizer que as águas das barragens do Alto Tietê estão privatizadas?
José Arraes – Sim. As empresas do consórcio fazem a conservação das barragens e a intermediação com a necessidade da Sabesp que a trata e remete para a população. Logo, para o consórcio de empresas, quanto mais cheias estiverem as barragens, mais água fornece para a Sabesp. Mais ganhos financeiros, portanto.
Viomundo – Qual das três hipóteses é a mais provável?
José Arraes – Talvez a combinação das três. Cabe ao Ministério Público investigar. O fato é que as barragens do Alto Tietê estão excessivamente cheias e as comportas estão sendo abertas, contribuindo com as inundações em toda a calha do rio até a região do Pantanal.
Viomundo – Quantas barragens há no Sistema Alto Tietê?
José Arraes – Temos cinco: Paraitinga, Biritiba-Mirim, Ponte Nova, Jundiaí e Taiaçubepa, onde existe também uma estação de tratamento de água da Sabesp. As barragens são como caixas d’água para a cidade de São Paulo.
Viomundo – Qual a capacidade de cada uma?
José Arraes – A de Paraitinga [município de Salesópolis], tem capacidade para 37 milhões de metros cúbicos, e está com 92% da sua capacidade. A de Biritiba-Mirim [no município do mesmo nome], 35 milhões de metros cúbicos, está com 94%. A de Jundiaí [fica em Mogi das Cruzes], 84 milhões de metros cúbicos e 97% de cheia. A de Ponte Nova, 300 milhões de metros cúbicos; está com 73%. A de Taiaçubepa [entre Mogi das Cruzes e Suzano] tem capacidade para 82 milhões de metros cúbicos, está com 73% de cheia.
Viomundo – Quais estão soltando água?
José Arraes – Todas. No sábado, 23 de janeiro, a de Paraitinga estava vazando 5m³/ A de Jundiaí, 2m³/s. Biritiba-Mirim, 1m³/s. Taiaçupeba, 5m³/s. A de Ponte Nova, 0,5m³/s.
Viomundo – Mas as barragens normalmente liberam água o tempo todo?
José Arraes – Liberam, mas em pouquíssimas quantidades. É para o rio não perder as suas características. Em condições normais, liberam entre 0,5m³/s a 2 ou 3m³/s, no máximo.
Viomundo – Então quanto está sendo vazado?
José Arraes – Se você somar as vazões de Paraitinga, Taiaçupeba, Jundiaí e Biritiba-Mirim, são 12m³/s. É bem maior que os 10m³/s que a Sabesp está tratando em Taiaçupeba. É uma enormidade de água. Para você ter uma dimensão do volume, você abastece toda a cidade de Mogi, que tem 400 mil habitantes, com 3m³/s.
E o mais complicado é que as barragens de Paraitinga, Biriba-Mirim, Jundiaí e Taiaçupeba vazam para rios afluentes diretos do rio Tietê. É por isso que o Pantanal está cheio. As águas vazadas já chegaram até aí. Se você libera pouca água no rio, não causa transtorno nenhum. Agora, o transtorno é liberar 5, 6, 12m³/s no rio. É água demais! Acrescida das quantidades das chuvas deste verão, piora a situação.
Viomundo – É preciso liberar as águas das barragens?
José Arraes – Agora, tem de abrir as comportas, não tem outro jeito, pois as barragens estão cheias e vão transbordar. O grande erro foi deixar as barragens acumularem tanta água antes das chuvas do verão. No momento, estão tendo de soltar muita água.
Viomundo – Ou seja, estão abrindo as comportas na época errada. Quando isso deveria ter começado?
José Arraes – O normal seria o vazamento controlado ter começado por volta de agosto, setembro, para que, agora, no verão, as barragens estivessem mais vazias para receber as águas das chuvas e não transbordar.
Viomundo – Não fizeram isso?
José Arraes – Não, não fizeram. Ou se fizeram, não foi corretamente. O fato é que as nossas barragens não poderiam chegar à época de chuvas com 90% da sua capacidade preenchida. De forma que o Pantanal provavelmente ainda vai ter muita enchente, porque as chuvas vão continuar. A Sabesp e o Daee não vão parar de vazar agora, pois há risco de essas barragens extravasarem e inundar toda a região de Mogi das Cruzes, Paraisópolis, Ferraz de Vasconcellos, Suzano, Biriti-Mirim e até São Paulo.
Viomundo – É verdade que essas barragens podem se romper se as comportas não são abertas?
José Arraes – Romper, eu não acredito. Mas poderiam extravasar, ou seja, passar por cima da barragem. Se isso acontecer, você pode perder o controle da vazão. Diferentemente de quando você abre as comportas e limita a vazão do quanto é necessário. Por isso, a nossa preocupação é também com o extravasamento dessas barragens. Elas podem encher tanto que a água começará a passar por cima dos vertedouros. Isso é perigoso. Se vier a acontecer, as águas chegariam fatalmente a São Paulo.
Viomundo – A Sabesp alega que as barragens foram mantidas cheias, por causa do risco de estiagem em 2009. Há também quem diga que não se poderia ter bola de cristal para prever as chuvas dos últimos dias.
José Arraes – Balela. A Sabesp e principalmente o Daee têm o registro das chuvas dos últimos 20, 30 anos. Todos sabem que são cíclicas. De cinco em cinco, de dez em dez anos, há um período de chuvas mais fortes. Então a Sabesp e o Daee deveriam ter se prevenido há muito mais tempo. Eu acho que não tem perdão para o que está acontecendo. É falta de gerenciamento mesmo.
Viomundo – Com que volume as barragens deveriam ter entrado na estação chuvosa?
José Arraes – Do jeito que está chovendo este ano, elas deveriam estar bem baixas. Questão de prevenção. Há cálculos matemáticos para se estabelecer esses níveis, mas eu não saberia fazê-los e te dizer quanto.
Viomundo – Será que pensaram que São Pedro fosse dar uma mãozinha para São Paulo?
José Arraes – Como poderiam aguardar a ajuda de São Pedro, se a Sabesp e o Daee sabem que chove bastante de períodos em períodos. Foi uma grande irresponsabilidade.
Viomundo – A Sabesp e o Daee só se preocuparam com o abastecimento de água e se descuidaram das enchentes?
José Arraes – Aparentemente é o que aconteceu. Lembre-se de que a água tratada gera lucro.
Viomundo – A região do Pantanal encheu, de novo, de repente, a partir do sábado no final da tarde. Para isso ter ocorrido no sábado, quando as comportas começaram a ser abertas?
José Arraes – O dia exato eu não saberia dizer, mas foi mais ou menos há 20 dias. Foi mais ou menos quando o governador José Serra noticiou que havia autorizado a abertura das comportas.
Viomundo – Demora tanto tempo para chegar aqui embaixo, na capital, na região do Pantanal?
José Arraes – Demora. Não é imediatamente. O Tietê é um rio de planície, não tem velocidade e correnteza. Tem uma vazão muito pequena. Quando são abertas as comportas, as águas demoram mais ou menos 10 a 15 dias para chegar a São Paulo, dependendo ainda do assoreamento do rio. O fato é que as comportas já estão abertas há vários dias.
Viomundo – Conversei com várias lideranças comunitárias sobre isso. Nenhuma foi comunicada da abertura das comportas. Segundo Ronaldo Delfino, do Pantanal, talvez a Defesa Civil também não tenha sido alertada, pois muitos moradores acionaram-na e não foram socorridos. Ligavam, ligavam, ligavam, só dava ocupado, “como se o telefone estivesse fora do gancho”.
José Arraes – Infelizmente, em geral, as populações não são comunicadas com antecedência. São alertadas pela televisão, mas só DEPOIS. É um erro muito grave, que pode custar vidas.
Viomundo – Pelo noticiário, as chuvas dos últimos dias são apontadas pelas autoridades como as responsáveis pela nova e maior inundação do Pantanal. O que o senhor acha?
José Arraes – As chuvas podem até ter contribuído, mas a causa mais importante dessa nova inundação é que as barragens do sistema do Alto Tietê estão vazando água. E como Tietê está assoreado, o rio extravasa, inundando a várzea.
Viomundo -- Reportagem publicada pelo Viomundo denunciou que o Tietê da barragem da Penha até o Cebolão pode ter ficado sem ser desassoreado em 2006, 2007 e 2008 (até outubro) e contribuído para as enchentes históricas de 8 de setembro e 8 de dezembro? Como está o rio acima da barragem da Penha?
José Arraes – De Biritiba-Mirim até barragem da Penha está um horror, todo assoreado. Há muitos anos não são retirados os resíduos acumulados no fundo do Tietê. São mais ou menos uns 70 quilômetros de extensão. É um Deus nos acuda tentar convencer os órgãos do governo do Estado de que é preciso desassorear o rio.
Viomundo – O que fazer agora?
José Arraes – O que o Daee e a Sabesp estão fazendo é fruto de uma irresponsabilidade total. Nós temos denunciado isso, mas a nossa voz ainda é muito incipiente. Até as autoridades do governo do Estado levarem em consideração o que dissemos mais inundações ocorrerão, mais pessoas perderão pertences, algumas até a própria vida. O único caminho que nós temos é denunciar ao Ministério Público do Estado. Se for o caso, até ao Ministério Público Federal. É, insisto, o nosso único caminho.
De Conceição Lemes
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