sábado, 23 de janeiro de 2010

Dora Martins: “Mediação não visa tirar poder do Juiz”


Dora Martins e Gerivaldo Neiva - Fórum Mundial de Juízes, Belém-PA.

Nesta semana, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, afirmou que propostas do III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), como a que exigiria mediação prévia antes da concessão de liminares de reintegração de posse, são incompatíveis com a Constituição. O cacique do Supremo disse, ainda, que condicionar liminares a audiências públicas pode ser uma "medida abusiva".

Na opinião de Dora Martins, Juíza de Direito e membro do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD), "o que parece incompatível com a nossa Constituição ou o que, de verdade, a ofende, é seu descarado descumprimento e a não observância de seus consagrados princípios".

Para ela, o que se propõe é que se discuta, em projeto de lei, o uso da mediação para tentar a solução de conflitos agrários e urbanos de modo pacífico. "Juízes conscientes, comprometidos com a democracia, não têm por princípio ouvir as partes envolvidas em um conflito antes de tomar uma decisão?", questiona.

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, afirmou que propostas do PNDH-3 como a que exigiria mediação prévia antes da concessão de liminares de reintegração de posse são incompatíveis com a Constituição. A senhora concorda?

Dora Martins - O que me parece incompatível com a nossa Constituição ou o que, de verdade, a ofende, é seu descarado descumprimento e a não observância de seus consagrados princípios. Toda essa grita surgida após assinatura do PNDH faz parecer que muitos não leram o texto direito, ou o leram com modos tortos.

O Plano, em seu Objetivo Estratégico V, que dispõe sobre a "Modernização da gestão e agilização do funcionamento do sistema de justiça", traz, dentre outras, a seguinte disposição "d) Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos públicos especializados e Polícia Militar, como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos".

Ora, o que se propõe é que se discuta, em projeto de lei, o uso da mediação para tentar, num primeiro momento, a solução de conflitos agrários e urbanos de modo pacífico e consensual. No "diz que diz que" surgido em torno do PNDH, o senhor Ministro, com sua fala, em nada contribuiu com o debate e lançou mais dúvidas do que esclarecimentos.

Condicionar liminares a audiências públicas pode ser uma medida abusiva?

Juízes conscientes, comprometidos com a democracia, não têm por princípio ouvir as partes envolvidas em um conflito antes de tomar uma decisão? Como dito acima, o PNDH é um plano de ações programáticas, que hão de ser cumpridas, após discussão pelos poderes competentes, especialmente o Legislativo.

Assim, a proposta de se (1) "institucionalizar" a mediação, como ato inicial das demandas que envolve questões agrárias ou urbanas, e (2) priorizar (e não obrigar) a realização de audiência coletiva, como prévia ao momento de se decidir sobre o pedido liminar, não tem nada de abusivo. E, ademais, juizes e juízas, bem como membros do Ministério Público e da defensoria pública, conscientes de seu papel de garantidores dos princípios constitucionais e dos direitos humanos, assim já atuam. Um juiz, preocupado com os fins sociais do processo que está sob seu julgamento, ouve as partes, em audiência que busca a conciliação, e pode fazer vistorias no local do litígio, para conhecer a verdade material daquilo que está a julgar.

A Associação dos Juízes Federais de Rio de Janeiro e Espírito Santo (Ajuferjes) divulgou uma nota crítica à mediação como medida preliminar à concessão de liminares. Para o presidente da entidade, a proposta significa uma “invasão no poder geral de cautela dos juízes”. A senhora concorda? Por que?

Li a nota da Ajuferjes e não concordo com ela. A bem da verdade, a nota segue esse tom que vem sendo repetido pelos grande jornais. Fala e pouco diz, ou não diz tudo. Distorce o assunto. A mediação não visa tirar poder dos juízes. É uma outra cultura de composição de conflitos, com base no diálogo e não na decisão "de cima para baixo". O poder geral de cautela dos juízes não sofrerá abalo. E, se a mediação não der resultado positivo, o conflito seguirá para o Judiciário. A proposta do PNDH não tem o propósito de acabar com o poder de ninguém. Quer, a meu ver, apoderar o cidadão de seu direito de diálogo e busca de soluções pacífica, por consenso.

No caso de áreas ocupadas, o juiz perderia o poder de “restabelecer a ordem”?

Não creio ser essa a intenção, o espírito da proposta do PNDH. A partir da afirmação posta na pergunta, estaríamos a considerar que uma ocupação é sempre uma desordem?! Este nosso país varonil ainda não encarou, como devia, sua obrigação perante a prometida Reforma Agrária. Cada caso é um caso. E, quando há o envolvimento de interesses vários e de diferentes quilates, é possível, para garantir o que diz a Constituição Brasileira, ("erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", artigo 3o. III)) decidir-se pela legitimidade de uma área ocupada. Assim, essa animada e apressada análise do PNDH, vendo nele demônios que não existem, em nada contribui para a garantia dos direitos humanos.

O Congresso colocará em votação Projetos de Lei que surgirem a partir do programa. Os movimentos sociais e as entidades de direitos humanos devem ter algum tipo de expectativa?

Sob uma análise otimista, usando lentes cor de rosa, espera-se que o Congresso discuta e vote os projetos que devem nascer do PNDH, sem fazer ouvidos moucos ao povo brasileiro que deve ser ouvido e poder opinar. Agora, não se pode fingir que os interesses políticos e econômicos não contam, especialmente em tempos de disputa eleitoral. Mas, enfim, vale considerar que com a aprovação do PNDH deu-se um passo, importante, para a luta incansável em prol dos direitos humanos no Brasil. Luta antiga, lenta, e que tem que persistir.

No final do ano passado, a AJD prestou uma homenagem ao MST pela sua atuação na área de direitos humanos, o que gerou polêmica. Como a senhora vê essa reação?

A AJD apenas manifestou seu apreço pelos milhares de brasileiros e brasileiras que formam esse Movimento que, nas últimas décadas, fez a História deste Brasil. Houve, de fato, até ofensas pesadas à AJD, por conta desse gesto. Mas, nosso gesto foi livre, consciente e feliz, e, ainda perfeitamente harmonizado com nossos sonhos e nossa luta. Temos, dentre nossos princípios "a promoção da conscientização crescente da função judicante como proteção efetiva dos direitos do Homem, individual e coletivamente considerado, e a conseqüente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito". Essas são palavras que estão em nosso estatuto. A homenagem ao MST foi apenas uma forma de traduzir palavras em ação. E as críticas que recebemos apenas nos confirmam que estamos em nosso caminho escolhido e bom.

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