sábado, 23 de janeiro de 2010

Os “porcos do Rio” e o lixo no meu chão

Marcela voltava de uma noitada na Lapa carioca quando algo inesperado aconteceu. Carlos, seu amigo, professor universitário de Ciências Políticas, abaixou o vidro do taxi e arremessou uma latinha de cerveja à distância, em direção a um meio-fio no Aterro do Flamengo. Marcela esbravejou. Aquilo a incomodou de tal forma, que perdeu o controle emocional e deixou de lado a diplomacia.

– Carlos! Como assim? Por que fez isso?
– Isso o quê? Qual o problema?!?!
– Como assim ‘qual o problema’? Você jogou a lata pela janela!
– Ah, fala sério, é carnaval, eu posso.

Marcela ficou ainda mais nervosa. Não conseguia compreender como um rapaz estudado, com mestrado, filho da classe média alta e engajado social e politicamente era capaz daquela atitude. Carlos não só teria atirado automaticamente o lixo na rua se estivesse num bloco de carnaval. Mais do que isso: o fez de maneira consciente, ao descer o vidro do taxi, que seguia em alta velocidade, e arremessar com pontaria o objeto.

– Ah, então porque é carnaval, você tem o direito de jogar uma lata de cerveja na rua... Que idiotice! Você é uma pessoa esclarecida. .. Você sabe muito bem o que essa merda de lixo na rua provoca. Você sabe as consequências. ..
– Você não acha que eu já to bem grandinho...
– ...pra ficar ouvindo sermão!/ – ...pra jogar lixo na rua! – disseram os dois ao mesmo tempo, exaltados.
– ...Eu tô dando emprego pros catadores, tô contribuindo com o mercado de trabalho... Não enche!
– Não acredito no que tô ouvindo... – retrucou Marcela. – Você tá contribuindo pra manter catador como subemprego, isso sim. Você acha que alguém gosta de catar o seu lixo por onde você passa? Ninguém gosta de catar o seu lixo. Acorda!

Um longo silêncio se estabeleceu e um abismo momentâneo se instalou na amizade dos dois.

De volta das férias, um colega de trabalho pediu-me que escrevesse sobre os “porcos do RJ”. Lembrei logo da história de Marcela e Carlos, dois amigos de Brasília, cujos nomes são fictícios, mas o diálogo quase que real.

Meu colega de trabalho descreveu uma cena semelhante no Arpoador. Sentado, vendo o pôr do sol, viu voar em seu colo um saco de salgadinho arremessado de uma pedra acima. A cidadã, dona do saco, queria jogar o lixo no mar. Mas o máximo que conseguiu, por forças do vento, foi atingir uma pedra próxima.

Em Brasília, uma amiga presenciou uma cena de “porqueira” na Esplanada dos Ministérios, local que concentra o poder público do país. Amanda, nome também fictício, voltava de ônibus do trabalho quando uma moça com seus 21 anos jogou um saco de Fandangos pela janela. Amanda interveio e pediu que a garota não fizesse aquilo. A menina, que estava ao lado de uma amiga, esperou que ela também terminasse o seu pacote de Fandangos e, olhando para Amanda, provocou-a: “Olha o que eu faço”, e jogou o outro lixo através da janela.

Essas histórias se repetem. Os tais “porcos do RJ” não se restringem apenas ao Rio de Janeiro. A mentalidade de jogar lixo no chão está entranhada em cabeças localizadas nas cinco regiões do país. E, infelizmente, independe de classe social e escolaridade. O hábito de jogar latas, papel de bala, cigarro e outros ínfimos dejetos na rua é uma atitude automática passada de pai para filho há anos.

Mas há outra mentalidade crescente: a ideia de que o papel do catador é “catar o lixo que eu jogo no chão”.. Tem sido comum ver homens, mulheres e crianças catando latinhas por entre as pernas de pessoas que se divertem em show e festas. Comum também ver catadores nos lixos em busca de plástico, papelão, vidro, etc. Mas isso não faz parte do que se deve ser, não condiz com uma realidade que se deve buscar. Não quero que os filhos dos meus filhos achem isso simplesmente "normal".

Ao menos não condiz com o que buscam os próprios catadores, na avaliação do Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis, que luta pelos direitos de cerca de 800 mil pessoas que coletam resíduos sólidos no país. Para eles, esse argumento de contribuir para o trabalho dos catadores, muito utilizado por pessoas que jogam lixo no chão, não faz sentido.

Fiz uma pergunta ilustrativa, porém direta ao movimento: “Quando eu estou num show e jogo uma latinha no chão, eu estou contribuindo para o trabalho dos catadores?”. A resposta foi bem instrutiva:

“Não contribui diretamente. O catador acaba minimizando o problema da falta de educação das pessoas de atirar lixo na rua. Uma atitude como essa não ajuda o trabalho dos catadores. O catador faz a coleta e não recebe nada por isso. O que ajuda é fomentar a organização desse trabalho e investir em infraestrutura”.

O movimento tem trabalhado para profissionalizar os catadores de lixo, para garantir direitos trabalhistas à categoria, para conseguir que catadores recebam pela função de coletar o lixo, para regularizar o sistema de coleta e para evitar que se caia na normalidade achar natural atirar lixo na rua. Jogar uma lata de cerveja no chão pode sim, em um país de injustiças, contribuir para que um catador ganhe um trocado a mais. Mas não contribui para tornar esse trabalho mais “digno e sustentável”.

“(...) acreditamos fielmente que o incentivo à auto-organização dos catadores é a única saída para tornar o trabalho digno e sustentável. Só assim será possível gerar trabalho e renda, fazer inclusão social de fato, abastecer a cadeia produtiva de recicláveis de maneira justa, preservar o meio ambiente e combater a exploração”.

É certo que, aos poucos, as consciências estão mudando. Mas muitos ainda não estabelecem conexão entre o papel de bala jogado na rua e a enchente, entre o saquinho de Ruffle's, Fandangos, etc. e a leptospirose, ou entre o copinho plástico e a dengue. Quem joga lixo na rua pode até fazê-lo automaticamente e alegar falta de informação e lixeiras. Mas, na verdade, essas mesmas pessoas, muito provavelmente, não jogam lixo no chão das suas próprias casas.

De Renata Camargo

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