terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

“Aconteceu no último verão..."

O Brasil “reabre” ou “reestréia” depois do Carnaval. Tem sido assim, e todo mundo pensava que desta vez fosse também assim. Em dezembro, na imprensa, começa a temporada das “matérias de verão”, todas frias, com pautas de comportamento cheias de dietas inúteis, adolescentes rebeldes, segredos para manter a juventude. É o tempo em que nada será muito sério.

Mas o verão 2009/2010 foi quente em todos os sentidos. A pauta que “esquentou” foi a dos direitos humanos.

Em pleno reveillon surgiu a “crise militar”. Os comandantes do Exército e da Aeronáutica não gostaram do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos – uma coisa natural e de lei - e ameaçaram pedir demissão. O ministro da Defesa resolveu acompanha-los. A causa seria a implantação de uma Comissão da Verdade, que examinaria os crimes de repressão política na ditadura. Essa “crise”, aliás, é uma notícia estranha até hoje, porque foi divulgada à noite mas nenhuma TV ou rádio ou site sabia. Saiu direto nos jornalões impressos pela manhã, como acontecia mais de 40 anos atrás. Por que?

A crise só não foi mais profunda, pelo menos nos jornais, porque o país foi surpreendido por uma tragédia.O deslizamento de terra em Angra dos Reis em plena virada do ano matou 62 pessoas. Vimos pela TV, assustados, uma única máquina retro-escavadeira em busca de gente desaparecida e bombeiros heróicos e exaustos, ajudados pela população que vasculhava na lama em busca de sinal de vida.

A chuva não deu trégua e chegou forte também no Vale do Paraíba, isolando a cidade de Cunha e destruindo o patrimônio histórico em São Luiz do Paraitinga. Tropas do exército ajudaram nas cidades paulistas, no direito ao socorro e à vida.

Veio a seguir a notícia do Haiti. Os militares brasileiros, que já estavam lá, participam da reconstrução do país, no que é possível fazer a curto prazo. Novamente o direto básico à vida, que deve prevalecer sobre todos os outros.

Enquanto isso o setor do agronegócio falava em direito à propriedade – que, aliás, também consta de todas as declarações e programas de Direitos Humanos. Mas propriedade para todos – incluindo os moradores urbanos, como os mais de 20 mil que foram vítimas da tragédia das enchentes em São Paulo e outras partes do Brasil.

Chuva intensa, barragens e rios transbordando, dois meses de alagamento com a água invadindo as moradias, os morros deslizando e a enxurrada lavando tudo o que estava à frente, deixaram um total de 69 mortos. Sem contar os feridos e os que ficaram sem direito à casa, à saúde, aos seus bens, aos seus sonhos muito humanos. Do poder público tiveram muito pouco, mesmo assim quando a água baixou.

Fevereiro chegou com a instalação da Comissão da Anistia em São Paulo, no Sindicato dos Metalúrgicos, quando mais de oitenta pedidos foram julgados. Entre eles, o do governador Mario Covas, que foi um dos perseguidos durante a ditadura. Finalmente, a justiça.

O preconceito contra a diversidade sexual também entrou na lista do verão. Indicado para assumir a vaga de titular do Superior Tribunal Militar, o general Raymundo Nonato de Cerqueira Filho declarou no Senado que os homossexuais deveriam procurar outra atividade que não as Forças Armadas. O caso esquentou e, no final, o general se desculpou e os senadores aceitaram. Ficou claro que o respeito humano deve prevalecer para que a vida continue.

Outro militar entrou no noticiário. O general Maynard Santa Rosa, ainda na ativa, decidiu espalhar pela Internet um texto em que chamava os integrantes da Comissão da Verdade, já indicados, de fanáticos, e dizia que ela seria transformada em “comissão da calúnia”. Foi exonerado pelo ministro da Defesa, numa dessas voltas que a vida dá – às vezes no espaço de um verão.

Teve mais: os 84 policiais militares acusados de matar 111 presos do antigo Carandiru iriam a júri popular, embora seu comandante já tenha falecido e sido absolvido. É possível recurso ainda, mas não custa lembrar que os presos estavam sob custódia do Estado e foram mortos sem possibilidade de defesa por agentes desse mesmo Estado.

Aí chega o Carnaval e o cordão do Bola Preta, no Rio, tinha um milhão e meio de brincalhões – um exagero, mas a Globo deu assim. Nos desfiles das escolas de samba teve até a bateria da Mangueira “presa e censurada”, com direito a “borrachadas” e mestres fantasiados de PMs. Na terça-feira, que voltou a ser gorda, perto de cem cordões saíram às ruas do Rio – “como nos tempos de felicidade”, disse um folião. Tinha riso, tinha samba, tinha beijo.

Pela TV, vimos e ouvimos que em Recife, Olinda, Salvador, Ouro Preto, Belém e Manaus, o carnaval voltou aos velhos tempos, quando todos podem fazer alegremente o exorcismo das mágoas e tocar a vida em frente com confiança, retomando a auto-estima. Acho que foi isso que aconteceu no Brasil, oficialmente “reaberto” agora.

A novidade é que 2009 terminou melhor do que começou, o Brasil parece sair da crise eterna – sobram empregos qualificados em fevereiro! – e começamos a gostar mais de nós mesmos. Feliz ano novo, então, pra todos nós..

De Rose Nogueira

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