sábado, 13 de fevereiro de 2010
BOLSA FAMÍLIA E A MÍDIA
Os leitores de Veja, O Globo e O Estado de S.Paulo se depararam, nos últimos dias, com uma série de matérias contendo dados equivocados e juízos de valor que não se sustentam em se tratando do Programa Bolsa Família, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Em comum às três matérias, além dos equívocos, uma nítida tentativa de vincular o programa que é referência nacional e internacional em redução de pobreza com ações eleitoreiras e até mesmo com o que denominam de "terrorismo eleitoral".
A primeira matéria coube à revista Veja que, na edição 2149 (de 24/1/2010), sob o título de "Bolsa-Cabresto" , publicou duas páginas onde, no lugar de informações para o leitor, lançou mão de dados equivocados, chegou a números fantasiosos e nem se deu ao trabalho de ouvir o MDS antes de publicar a sua "tese" sobre o assunto. Na segunda-feira (25/1), a Assessoria de Comunicação do MDS enviou à Veja uma nota de esclarecimento, na qual rebatia todos os pontos da matéria e solicitava que a revista a publicasse na próxima edição. Na terça-feira (26), a repórter de Veja que assina a matéria, Laura Diniz, fez contato com a Assessoria de Comunicação do MDS e solicitou mais alguns dados, no que foi prontamente atendida.
Na oportunidade, a assessora responsável direta pelo Programa Bolsa Família, jornalista Roseli Garcia, informou à repórter de Veja que o MDS havia enviado a nota de esclarecimento e que aguardava a publicação. Em resposta, ouviu que a nota estava "grande demais" e que "dificilmente seria publicada". Na noite de quarta-feira (27), a repórter encaminhou para o MDS um texto com a proposta de retificação por parte da revista Veja. A nota, num total de quatro linhas, nem de longe contemplava as correções apontadas pelo ministério na matéria publicada por Veja.
Diante disso, a Assessoria de Comunicação encaminhou, na quinta-feira, ao diretor de redação de Veja Eurípedes Alcântara e ao redator-chefe, Mario Sabino, uma mensagem contendo todo o ocorrido e solicitando, em respeito aos leitores e à verdade, a publicação da resposta na íntegra. Não recebemos retorno por parte dos dois dirigentes da revista. Aliás, as duas mensagens foram descartadas sem terem sido lidas. Na sequência, a repórter responsável pela matéria telefonou para Ascom/MDS solicitando uma diminuição no tamanho da nota. Atendendo a esse pedido, essa redução foi feita de forma a contemplar explicações mínimas que pudessem fazer o leitor entender o equívoco cometido pela revista. Essa nova nota foi encaminhada na noite de quinta-feira (28/1).
Na sexta-feira, a repórter liga novamente para Ascom/MDS dizendo que a carta "continuava grande demais" e que tinha preparado uma correção, pois considerava "melhor para o ministério" a retificação da revista do que a publicação da carta. A ela foi respondido que preferíamos a carta, por esclarecer melhor o caso aos leitores.
Veja optou pela correção que ela própria fez, publicada em corpo minúsculo sem ter respondido aos principais equívocos apontados pela Ascom/MDS. Além disso, em destaque, publicou duas cartas de leitores que continham críticas ao Programa Bolsa Família a partir de uma matéria repleta de erros. Vale dizer: amplificou, novamente, o próprio erro, sem aceitá-lo como tal.
Campeões da democracia
Já no dia 1º de fevereiro, o MDS é novamente surpreendido. Em editorial, intitulado "Bolsa Família e eleição" o jornal O Estado de S. Paulo, utilizando os mesmos argumentos usados na matéria da revista Veja, afirma que não haveria exclusão de beneficiários do programa em 2010. O que é um equívoco, pois já em fevereiro estão sendo cancelados 710 mil benefícios por falta de atualização cadastral. A Ascom/MDS encaminhou carta ao Estado de S. Paulo explicando que o editorial fazia uma análise equivocada da instrução operacional do MDS que apenas detalha o trabalho as ser feito pelos gestores do Programa Bolsa Família em 2010 idêntica à cometida pela revista Veja.
No dia seguinte, o jornal publicou a íntegra da carta e questionou o seu conteúdo, afirmando que o documento "não permite conhecer a fundo os critérios estabelecidos pelo programa, o erro não é do jornal, mas do Ministério". Como rege o bom jornalismo, se um documento não está claro, cabe ao jornalista estudar o assunto e informar de maneira clara aos seus leitores. Em outras palavras, faltou ao Estado de S.Paulo ater-se a uma regra básica no jornalismo: a apuração. Nesse ponto, aliás, O Estado de S.Paulo, O Globo e Veja se assemelham: estão deixando de apurar e publicando o que acreditam ser a verdade.
Na mesma segunda-feira (1/2), devido ao editorial de O Estado de S.Paulo, a Ascom/MDS foi procurada pela reportagem de O Globo. Todas as explicações dadas à Veja e ao Estado de S.Paulo foram repassadas a O Globo, mostrando os equívocos cometidos pelas duas outras publicações. Mas o jornal, lendo a instrução normativa que trata apenas de procedimento em relação à atualização cadastral encaminhada pelo MDS aos gestores, abordou outro aspecto também de forma incorreta. O Globo classificou essa norma, em manchete, como: "Governo faz ameaça eleitoral ao recadastrar Bolsa Família".
Mais uma vez a Ascom/MDS encaminhou carta ao jornal, que foi utilizada na matéria do dia seguinte em texto intitulado "Tiroteio com o Bolsa Família". Neste texto, o jornal utiliza as declarações de parlamentares de partidos da oposição ao governo para sustentar a polêmica criada pelo próprio veículo.
O assunto repercutiu em vários veículos nacionais e também na imprensa regional, criando uma situação no mínimo curiosa para quem é leitor atento ou para aqueles que se interessam pelo comportamento de parte da mídia brasileira. Nos dias atuais, a mídia tem deixado de lado o papel clássico de informar, interpretar e opinar (nos espaços devidos) para, ela própria, tornar-se a origem da informação e, não raro, ator no cenário político nacional.
No caso do Programa Bolsa Família, as informações e a análise apresentadas pela mídia foram equivocadas e funcionaram como retroalimentação. Num dia um veículo publica algo equivocado. Não retifica o erro. No dia seguinte, outro veículo, tomando o que foi publicado como verdade, amplifica o erro. No terceiro dia, um novo veículo entra "na roda" e assim a "polêmica" está criada. Para confirmar os pressupostos da mídia, políticos de oposição são entrevistas e ganham destaque.
Essa situação em si é extremamente preocupante para o futuro das instituições e para a própria democracia no Brasil, porque deixa a parte atingida, no caso o agente público, sem condição para restabelecer a verdade. A preocupação torna-se maior ainda quando se sabe do papel central que a mídia tem na sociedade contemporânea.
No caso brasileiro, a censura oficial à imprensa foi abolida há décadas e a liberdade de informação e expressão encontra-se consagradas na Constituição de 1988. Mas, infelizmente, o que se percebe é que o poder de censura, que nos governos autoritários estava nas mãos do Estado, migrou para as mãos de um reduzido número de empresas e de articulistas que se auto-intitulam os porta-vozes da verdade e os campeões da democracia. Essa situação torna-se ainda mais difícil quando dentro dos grandes grupos midiáticos prevalecem as velhas ideologias do liberalismo do século 18 e 19.
Escolhas próprias
Nos três casos descritos, faltou muito mais do que o necessário restabelecimento da verdade. Faltou seriedade profissional e empresarial na cobertura de um tema da maior importância para a sociedade brasileira e que mexe com a vida de milhares de pessoas. Dia a dia, o que se verifica é que a mídia brasileira não percebeu que o Brasil mudou e que as políticas sociais estão instituídas enquanto políticas públicas, que demandam conhecimento e acompanhamento permanente em relação ao seu funcionamento. As políticas públicas na área social estão sepultando a cultura política da dádiva, contribuindo para a emancipação das pessoas e para a plena cidadania.
Com exceção de uns dois ou três jornalistas que se especializaram por conta própria na cobertura dos chamados programas sociais, não há, na mídia brasileira, quem acompanhe, com um mínimo de regularidade, a vida desses programas e, sobretudo, os seus resultados. Apesar da importância dos programas sociais, a mídia brasileira ainda não criou, sequer, uma editoria específica para a cobertura deles. E se no passado podia-se argumentar que as classes C, D e E não tinham peso no mercado, também esse argumento não mais se sustenta. A cobertura jornalística das políticas públicas é um dos grandes desafios e uma das maiores deficiências da imprensa brasileira.
Em anos de eleição, as dificuldades se acentuam mais. A disputa política envolve grandes riscos para os jornalistas. Se muitos temem se tornar instrumento de propaganda eleitoral de governos e candidatos, ao cobrir de forma acrítica o desempenho dos programas sociais, há igualmente o risco de dar a todas as políticas públicas um caráter e uma intenção eleitorais e, com isso, deixar de levar ao cidadão beneficiado as informações essenciais. Isso, sem falar na arrogância daqueles que se arvoram em "defensores do povo" sem, ao menos, dar a palavra a quem é de direito.
Voltando ao caso da revista Veja, chama atenção na matéria citada como os grandes ausentes do texto são os beneficiários do Programa Bolsa Família. Eles aparecem na foto que ilustra a matéria, mas não são ouvidos pela repórter. Se ouvidos, esses beneficiários teriam muito a dizer sobre o que está mudando em suas vidas. Mas, ao que tudo indica, isso não é interessante para os porta-vozes do nicho mais conservador da sociedade brasileira. Motivo pelo qual se prefere dar voz aos "formadores de opinião", sejam eles cientistas políticos ou articulistas.
A importância da mídia para a formação da opinião pública é inegável, mas a cada dia o cidadão e a cidadã se mostram mais conscientes e competentes ao fazerem as suas escolhas. Escolhas não só em termos eleitorais, mas escolhas sobre o que ler e onde buscar informações. Não é por acaso que a tiragem da mídia impressa brasileira tem apresentado acentuado declínio nos últimos anos, enquanto crescem exponencialmente os acessos aos sites e blogs.
De Ângela Carrato e João Mendes
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