George W. Bush foi claro em seus objetivos: "refazer" o mundo à imagem e semelhança dos Estados Unidos, se preciso à força. A ideia era começar pelo Iraque. Uma vez construída lá uma democracia "saudável" -- pelos padrões de Washington, é claro --, o Iraque serviria com uma espécie de farol a iluminar o Oriente Médio: o Irã, a Síria e a Arábia Saudita seguiriam "naturalmente" pelo mesmo caminho.
Não é preciso ir longe para constatar a hipocrisia dessa ideia tola: Washington não cobra democracia dos aliados sauditas com a mesma força que cobra democracia dos aiatolás iranianos, aos quais acusa de reprimir mulheres, homossexuais e a oposição civil. Trata-se, portanto, da apropriação de um discurso de defesa da democracia para fazer avançar os interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos.
O padrão é o mesmo quando se trata da questão nuclear: a primeira bomba atômica do Irã é vista como "fim do mundo" em uma região onde é sabido que Israel tem algumas dezenas, talvez centenas, de ogivas nucleares. De novo, um país que tem milhares de bombas atômicas se apropria do discurso da não proliferação para condenar o Irã, enquanto protege Israel de qualquer tipo de sanção internacional, ainda que Israel desrespeite flagrantemente resoluções aprovadas pelas Nações Unidas ocupando terras alheias. Não me consta que o Irã ocupe militarmente terras de um povo vizinho.
Na América Latina, Bush promoveu com relativo sucesso a ideia de "flexibilizaçã o" das fronteiras nacionais, ao apoiar o ataque da Colômbia aos acampamentos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em território do Equador. Embora o ataque tenha sido condenado pela maioria dos países da América Latina, Washington propagandeou para a opinião pública da região, através do governo da Colômbia, a ideia da relativização da soberania em "situações de emergência". Foi um exercício da doutrina de "ataques preventivos" . Ontem foi contra o território do Equador. Amanhã poderá ser contra um governante que "destrua o meio ambiente", contra um movimento social que "ameace a estabilidade regional".
Curiosamente, o governo Obama deu quatro passos recentes para aprofundar a doutrina Bush de ataques preventivos, ainda que com outro nome e métodos, quando se esperava que desistisse dela.
O primeiro foi na aceleração do uso de aviões não tripulados, os drones, na chamada "guerra contra o terror" no Afeganistão e no Paquistão. Os drones ajudam a confundir ainda mais a ideia de fronteiras nacionais e de soberania, uma vez que eles podem ser teleguiados desde o Afeganistão para atacar no Paquistão e desde o Paquistão para atacar o Afeganistão. Nesse caso, a tecnologia poderá acabar guiando a política: os ataques "cirúrgicos" com aviões teleguiados, que sabemos não serem tão cirúrgicos assim, são a arma ideal para conduzir "ataques preventivos" . Oferecem baixo risco de perdas humanas para quem ataca e permitem ao agressor dizer que agiu "em legítima defesa", desde seu território, contra um alvo ameaçador além-fronteira.
O segundo passo foi no rearranjo das bases militares dos Estados Unidos no mundo, da qual temos um exemplo aqui mesmo na América Latina: Washington ampliou seus pontos de "touch-and-go" , os pontos de passagem necessários para organizar ofensivas militares ou "humanitárias" . A Colômbia, nesse sentido, foi convertida em uma espécie de porta-aviões. As bases colombianas, combinadas com os navios da Quarta Frota, permitirão a projeção do poderio militar do Pentágono de Caracas à Terra do Fogo, da costa brasileira no Atlântico à costa peruana no Pacífico.
O terceiro passo foi na aplicação de sanções seletivas, como a que os Estados Unidos pretendem agora adotar contra os Guardas Revolucionários do Irã. Isso permite a Washington argumentar que não está promovendo boicotes econômicos contra um país ou um povo, mas contra "elementos perniciosos" , os "tumores" que precisam ser extirpados em operações "cirúrgicas". Por trás desse discurso de higienização da política alheia se esconde um perigo: amanhã, pelos critérios de Washington, sanções específicas poderão ser aplicadas contra um partido político que faça campanha ameaçando os interesses dos Estados Unidos. É uma forma engenhosa de intervir na política doméstica de outros países, tão absurda quanto se a China decidisse gastar rios de dinheiro para derrotar o Partido Republicano nas eleiçoes americanas.
O que me leva ao quarto ponto, que é a doutrina da secretária de Estado Hillary Clinton, amplamente anunciada no site America.gov, de que os Estados Unidos passarão a "julgar" os governos alheios não apenas pelos critérios de eleições livres e limpas, mas da "boa governança". Notem, mais uma vez, que quem define o que é "boa governança" ou "má governança" é Washington. Os critérios são suficientemente amplos para enquadrar qualquer governo do mundo como violador da "boa governança". Falam, por exemplo, na defesa dos direitos das mulheres e das adolescentes, das ONGs e da participação da sociedade civil no governo. No papel, a defesa desses princípios pode parecer louvável. Mas a inclusão deles como critérios de "boa governança", cuja violação pode sujeitar governos a ações punitivas de Washington, abre caminho para uma política externa ainda mais intervencionista dos Estados Unidos.
Não estranho, porém, que isso esteja acontecendo. Desde o escândalo Irã-contras, no governo de Ronald Reagan -- quando a Casa Branca vendeu armas secretamente ao Irã e usou o dinheiro para armar os contras, que tentavam derrubar o governo sandinista da Nicarágua --, a "promoção da democracia" no Exterior deixou de ser tarefa central da CIA e dos serviços de inteligência e passou a ser feita abertamente através do National Endowment for Democracy (NED).
A fórmula engenhosa de Reagan garantiu financiamento público para a tarefa, uma vez que o NED é bipartidário: dinheiro público aprovado pelo Congresso é entregue ao National Democratic Institute (NDI), o braço internacional do Partido Democrata; ao International Republican Institute (IRI), braço internacional do Partido Republicano; ao Solidarity Center, mantido pela maior central sindical dos Estados Unidos, a AFL-CIO; e ao Center for International Private Enterprise, ligado à Câmara de Comércio dos Estados Unidos.
A partir disso, uma rede internacional de organizações surgiu. Essa rede é "revolucionária" contra a junta militar da Birmânia, por exemplo; ajuda a organizar a oposição ou a derrubar governos contrários aos interesses dos Estados Unidos nas ex-repúblicas soviéticas. Mas, curiosamente, ela é muito menos ativa para denunciar a ocupação de terras palestinas por Israel, abusos de direitos humanos do governo da Arábia Saudita ou a guerra civil no Congo "patrocinada" pelo interesse externo nos minerais do país. Trata-se, portanto, de promover seletivamente a democracia e, ainda assim, um certo tipo de democracia.
Esse intervencionismo branco vem crescentemente despertando reações.
"A reação contra a assistência democrática" é um tema que tem sido vivamente debatido em Washington, pelo próprio NED, por jornais americanos como o Washington Post, pelo Journal of Democracy (publicação financiada pelo NED), pelo Democracy Digest e pela revista Foreign Affairs. Trata-se de uma ampla ação internacional, financiada primariamente mas não exclusivamente pelo Congresso dos Estados Unidos, com a participação de fundações privadas, cujo objetivo é promover uma espécie de "intervenção filantrópica" dos Estados Unidos. Quem questiona o modelo é taxado de "autocrata", "populista" ou "radical".
O modelo dessa intervenção já é razoavelmente conhecido, a partir de experiências práticas realizadas na ex-Iugoslávia, na Geórgia, na Ucrânia, na Venezuela e provavelmente em andamento agora no Irã: a mobilização da sociedade civil, especialmente de jovens desconectados das elites e dos partidos políticos locais, com o uso de palavras de ordem simples, objetivos políticos bem definidos e mobilização através das tecnologias de informação (Twitter, mídias sociais, mensagens de texto, You Tube, etc.)
O curioso é que esse modelo deu origem a um grupo exclusivamente dedicado a denunciá-lo, o International Endownment for Democracy, que trata do caráter intervencionista do NED e afiliados.
Tudo o que escrevi acima, em minha opinião, deixa claro que o governo de Barack Obama, com Hillary Clinton de secretária de Estado, longe de abandonar o caminho intervencionista e de "ataques preventivos" do governo Bush está aprofundando essa política com novas estratégias, conceitos e práticas.
De Luiz Carlos Azenha
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