sábado, 23 de janeiro de 2010

Um país acorrentado



Por que o jornalista brasileiro ainda hoje se surpreende quando a comunidade internacional suspeita da ajuda de Washington ao Haiti? Generosa ajuda de quase 20 mil homens, com equipamentos bélicos pesados. Dez vezes maior que a atual força internacional da ONU comandada pelo Brasil. Grandes helicópteros a pousar emblematicamente nos jardins do palácio presidencial haitiano.

Ingenuidade? Ignorância? Melhor apostar em submissão cultural do eterno colonizado. Ou o jornalista não tem a obrigação de saber do que houve na Coréia, no Vietnã, no Iraque, no Paquistão, no Afeganistão? E, antes, e bem antes, no próprio Haiti? E o porquê do país ser o mais pobre do planeta?

É Eduardo Galeano, profundo conhecedor das veias ainda abertas na América Latina, quem reaviva nossa memória. (http://resistir. info/galeano/ haiti_18jan10. html). (*)

ANTES. A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

(...) Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. (...) ...cada vez que Préval (substituto de Aristide), ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe: Recite a lição. A lição: é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo. (...)

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. (Deixaram-lhe sucessivos ditadores fieis a Washington). Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". (...)

BEM ANTES. Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda surra nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

Hoje, o Haiti entra para o rol dos países em reconstrução, mais uma mina de ouro a ser entregue aos donos do capital, a exemplo da ex-Iugoslávia, do Iraque, do Paquistão, do Afeganistão. Funciona mais ou menos assim: 1. As tropas invadem o país e destroem toda sua infra-estrutura (melhor se a infra-estrutura já estiver destruída, como no caso do Haiti). 2. O FMI (leia-se Washington) garante o empréstimo de centenas de milhões de dólares. 3. As tropas de ocupação garantem as instalações das empresas dos EUA que participarão da reconstrução e da recondução dos dólares ao seu país. Fica a dívida. 4. As tropas de ocupação deixarão o país quando a dívida for paga: nunca.

O jornalista brasileiro deveria saber um pouco mais. Ou sabe de tudo?

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