quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O intolerante olha, mas não vê

Nas grandes capitais do mundo, a população já aceitou a ideia de ser parte integrante de uma massa que é constantemente observada por meio dos sinalizadores automáticos de infrações em rodovias e centros urbanos. Sofisticadas câmeras e radares digitais auxiliam no controle de tráfego e na fiscalização do trânsito. Esses aparelhos, onividentes, surgiram e proliferaram na última década, depois das sequências de atentados terroristas que alguns países viveram.

Através do olho eletrônico, alguém observa secretamente, e sem percebermos. As primeiras aparições ocorreram em aeroportos e centros históricos e turísticos; depois, se expandiram para os espaços não só públicos como também privados, sempre com o intuito de defender a vida humana. São vistos nas entradas de edifícios e residências, nos elevadores e nos clubes, sem falar nos shoppings, garagens e escadas rolantes do metrô. Há também situações em que a pessoa acredita estar diante de uma câmera explícita, quando na realidade trata-se de um gadget vazio, um simulacro que serve para afugentar os curiosos e passantes de rua.

O cidadão nada pode fazer, a não ser constatar o quão vulnerável ele fica diante do observador oculto. No trânsito, ele não se resigna perante a situação de estar na mira do outro, fazendo de conta que ninguém o está vendo; por exemplo, quando avança acelerando e contrariando o horário do rodízio. Após, a prova é categórica: a infração foi captada pela imagem exibida na multa enviada pelo Detran.

“Estar de olho nele”, “manter alguém de olho”, ou mesmo “ficar de olho” são formas que designam uma oscilação de conduta que pode representar um desvio da norma ou um transtorno qualquer, seja do humor ou do comportamento. Sugere também que a desconfiança sobrepuja, e, de longe, a confiança, até que se prove pela imagem detectada pela tela. A introdução do scanner corporal – que mostra os detalhes do traçado do corpo em busca de traços de explosivos no corpo e nas bagagens – primeiro nos aeroportos britânicos e americanos logo será globalizada.

Tanto as câmeras digitais como os scanners podem ser considerados signos da época pós-humana, numa reedição tecnológica do Panóptico, instrumento imaginário que permite a visão de todas as partes do conjunto social. O corpo emerge como o grande alvo de observação; entretanto, o que interessa ao grande olho é saber sobre a intenção obscura e mal-intencionada do cidadão.

Segundo matéria da Folha de S.Paulo de 14 de janeiro de 2010, a medida começou a gerar desconforto e constrangimento aos passageiros, por alegarem invasão de privacidade. Entretanto, a capacidade de suportar, resistir e assimilar as novas formas de controle e prevenção demonstra como a população, dependendo das circunstâncias, prefere defender a tolerância como uma ação política.

A tolerância civil consiste no assentamento das relações humanas como grupo quando o ideal comum é estimado. A unidade social ocorre frequentemente em situações de catástrofes naturais e humanas, além das guerras.

As imagens veiculadas pela TV sobre o terremoto no Haiti, no mês de janeiro, não têm poupado o observador, pois estampa o insuportável de ver. Para os sobreviventes, a capacidade de suportar uma situação penosa põe em cheque a tolerância pessoal. Quando a água e o alimento são escassos, a desumanidade mostra a sua cara, deixando os rastros da destruição nos escombros da cidade. Assim, como há solidariedade, também há egoísmo e brutalidade.

O que se pode esperar de uma conduta desejável? A tolerância abriga traços de um ideal impossível?

Segundo o professor de filosofia medieval da universidade do Chile, Humberto Giannini, na vida pública, a tolerância como ideologia do bem pode exaltar os pontos nevrálgicos de certas ideias que põem à prova os ânimos da população. A tensão subjetiva pela qual o cidadão está submetido, em virtude da presença dos artefatos de vigilância, há muito se traduz em mais um mal-estar que a civilização impôs. A situação corrobora com outro mal-estar, o da angústia pelo perigo e a ameaça que sofre o eu perante o desamparo. A intolerância surge como sintoma social, expondo nua e cruamente a fragilidade humana.

Sempre parceira, a agressividade sublinha, sobretudo, a barbárie em função da falta que o diálogo e a troca de ideias fazem.
Desse modo, o sentimento e o espírito da época atual parecem ser a paranoia. Para entender a ideia, nada melhor do que recorrer ao escritor Elias Canetti, quando disse, acerca da noção do sobrevivente: “O perigo está em toda parte, e não apenas na sua frente. Ele é até mesmo maior às suas costas, onde o poderoso não seria capaz de notá-lo com suficiente rapidez. Assim, mantém seus olhos por toda parte: nem mesmo o ruído mais inaudível pode escapar-lhe, já que este poderia conter em si um propósito hostil”.

Vestida de todos os terrores, a forma crônica do delírio de perseguição na psicose foi demonstrada por Freud. Acrescentou, dentre seus estudos, um mecanismo de projeção, segundo o qual o paranoico se defende de uma representação inconciliável com o eu, projetando seu conteúdo no mundo externo.

As representações da intolerância contemporânea à diferença étnica, racial, territorial, geracional, de gênero, entre muitas outras, exteriorizam um estranhamento em relação ao eu ideal e o ideal do eu. O julgamento que o sujeito faz de si e o que deve ser feito opera no sentido de um acerto de contas permanente. Seria ele capaz de receber a diferença, sem rejeitá-la nem obstruí-la?

O preconceito e a vontade de dominar o outro, por ser impossível mantê-lo fora, instalam enormes ressentimentos e revolta. A má-fé, a hipocrisia e o asco da intolerância política, religiosa e intelectual convocam forças desagregadoras quanto à reflexão e à escuta do novo.

As crenças que reúnem a coesão de certas ideias são garantidas por uma cumplicidade coletiva que avalia o mundo, imprime a identidade e revela o ser. Quem é tolerante tenta compreender as razões dos outros e deste modo exercita a capacidade ativa de um poder, de uma potência intrínseca do sujeito. Contudo, esse estado de situação não garante a acolhida hospitaleira do estranho, tampouco a assimilação do que vem de fora, isto é, do estrangeiro que solicita um reconhecimento, sem perder a composição de sua unidade e de sua identidade.

Todavia, o processo de identificação reflete o ponto nodal em que o sujeito se aliena de si, onde mais esperava se integrar. Estar como objeto de olhar do outro, entre o visível e o invisível, situa a janela por trás da qual se supõe que alguém nos espreita. O olho eletrônico existe como invenção pós-humana e como metáfora. Ali onde falta a visão advém o olhar, que nada mais é do que o se dar-a-ver através das extremidades das câmeras e radares da Polis.

De Fani Hisgail

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