quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Moral internacional e o poder

“ no grau de cultura em que ainda

Se encontra o gênero humano, a

Guerra é um meio inevitável para

Estender a civilização, e só depois

Que a cultura tenha se desenvolvido

(deus sabe quando) será saudável e

Possível uma paz perpétua”



Kant





A confusão já era grande e ficou ainda maior depois do discurso de Obama, em defesa da guerra ao receber o premio Nobel da Paz.



Como liberal, Obama poderia ter utilizado os argumentos do filósofo alemão Kant, que também defendeu , na sua época, a legitimidade das guerras como meio de difusão da civilização européia, até chegada a hora da “paz perpétua”. Mas Obama preferiu voltar à Idade Média e recorrer às idéias de Santo Agostinho e Tomas de Aquino, sobre a legitimidade moral das “guerras justas”. A opção de Obama não foi casual; por meio dos santos católicos, em vez dos filósofos iluministas, tentou retomar a tese medieval de que existiria uma única moral internacional, situada acima de todas as culturas e civilizações, capaz de embasar juízos objetivos e imparciais sobre a conduta de todos os povos e todos os Estados.Não deve ter passado desapercebido à Obama que o argumento da “guerra justa” dos dois santos, estava associado ao projeto de construção de uma monarquia universal a da Igreja Católica dos séculos XII e XIII. O que talvez ele tenha esquecido ou desconsiderado é que esse projeto”cosmopolita” de Roma foi derrotado e desapareceu depois do nascimento dos Estados nacionais europeus. Da mesma forma que a tese da “guerra justa” foi engavetado depois da crítica demolidora de Grotius, jurista holandês e liberal, ao demonstrar a possibilidade de coexistirem no sistema interestatal formado na Europa- frente a uma única “justiça objetiva”- várias “inocências subjetivas”. Em outras palavras; mesmo em se acreditando na existência de uma única moral internacional, dentro de um sistema de Estados eqüipotentes, não haverá jamais como arbitrar”objetivamente”sobre a legitimidade de uma guerra entre dois Estados. Por isso, na prática, essa arbitragem coube sempre, através dos tempos, aos Estados que tiveram capacidade de impor seus interesses e seus valores, como universais. Nos séculos seguintes, esse paradoxo de Grotius se transformou na principal contradição e limite da utopia liberal inventada pelos europeus. Hobbes e Kant perceberam, desde o primeiro momento do novo sistema, que a garantia da ordem dos Estados e da liberdade dos indivíduos exigia a presença de um poder soberano absoluto acima de todos os demais poderes e da própria liberdade dos indivíduos . François Quesnais e a escola liberal dos fisiocratas franceses tambem concluíram que o bom funcionamento de uma economia de mercado requereria sempre um “tirano esclarecido” que eliminasse pela força, os obstáculos políticos ao próprio mercado. Kant novamente concluiu que as guerras eram um meio inevitável de difusão da civilização européia. Em todos os casos , pode-se identificar o mesmo paradoxo do reconhecimento liberal da necessidade do poder e da guerra para difundir e sustentar a própria moral em que se funda a liberdade. Reconhece-se também que no campo das relações internacionais, o que se chama de “moral internacional” será sempre a “moral” dos povos e dos Estados mais poderosos. Esses países foram chamados por Carr, teórico da política internacional inglesa, como sendo membros de um “círculo dos criadores da moral internacional”, formado nos dois últimos séculos pela Grã Bretanha, os EUA e a França. Para entender na prática, como se dão essas relações, basta olhar, hoje, para a posição dos anglo-saxões e dos franceses frente ao programa nuclear do Irã. O EUA patrocinaram o golpe que derrubou o presidente eleito do Irã em 1953 e sustentaram o regime autoritário do xá Reza Pahalavi, junto com seu programa nuclear, até sua deposição em 1979. Antes disso , tinham permitido que Israel tivesse acesso à tecnologia nuclear, com auxilio da França e Grã Bretanha por volta de 1965. Quando entrou em vigor o Tratado de Não Proliferação Nuclear em 1970, EUA, Grã Bretanha e França conheciam e esconderam o arsenal atômico de Israel, nunca protestando por esse país não ter assinado o Tratado, nem aceitado as inspeções da Agencia de Energia Atômica da Nações Unidas ou ainda por ter rejeitado a resolução 487 de 1981 do Conselho de Segurança da ONU quepropunhacolocar “instalações atomicas” de Israel sob a salvaguarda da International Atomic Energy Agency. Como resultado , existe hoje uma assimetria gigantesca de poder militar dentro do Oriente Médio; 15 paises, com 260milhões de habitantes e só Israel com apenas 7,5 milhões de habitantes e 20 mil quilômetros quadrados, detem um arsenal de cerca de 250 cabeças atômicas, com um sistema balístico extremamente sofisticado e com o apoio permanente da capacidade atômica e de ataque dos EUA, dentro do Oriente Médio. Nesse contexto, o esquecimento do “poder” no tratamento da “questão nuclear iraniana” e sua substituição por um juízo moral e de política interna são uma grande hipocrisia e manipulação publicitária. Por isso, quando se lê, hoje, a imprensa norte-americana—em particular os jornais liberais de Nova York--- fica-se com a impressão de que as bombas de Hiroshima e Nagasaki caíram do céu, sem interferência dos aviões norte-americanos no único ataque atômico feito a populações civis na história da humanidade. Fica-se com a impressão de que o arsenal atômico de Israel também caiu do céu, sem a interferência da França e da Grã Bretanha, nem com a aquiescência dos EUA, os grandes “criadores da moral internacional”. E o que é pior, fica-se com a impressão de que o Holocausto aconteceu no Irã, ou no mundo islâmico e não na Alemanha do filósofo Immanuel Kant, situada no coração da Europa cristã.

De José Luis Fiori

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