segunda-feira, 17 de maio de 2010

Raízes sociais e ideológicas do Lulismo

Talvez no futuro, quando for escrita a crônica factual dos dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva, o pleito de 29 de outubro de 2006 apareça como mera repetição dos resultados numéricos de quatro anos antes, em que o candidato do PT venceu o do PSDB por uma diferença em torno de 20 milhões de votos (1). Permanecerá então encoberto, sob cifras quase idênticas, o deslocamento que, com o aspecto superficial da consagração do lulismo, pode ter significado, na verdade, um importante realinhamento político de estratos decisivos do eleitorado.

Lula é arrastado pelas mãos da multidão que o acompanhou em Belém
(foto: Ricardo Stuckert/Divulgação)


A hipótese que desejamos sugerir neste artigo é que a emergência do lulismo expressa um fenômeno de representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as suas próprias formas de organização. Por isso, aos esforços despendidos ate aqui para analisar a natureza do lulismo (2), achamos conveniente acrescentar a combinação de ideias que, a nosso ver, caracteriza a fração de classe que por ele seria representada: a expectativa de um Estado o suficientemente forte para diminuir a desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida. Diante desse arranjo ideológico, uma possível nova hegemonia não seria "as avessas", como sugeriu Francisco de Oliveira, ainda que, ao juntar elementos de esquerda e de direita, cause a impressão de subverter a lógica dos argumentos. (3)

A percepção desse movimento profundo, que definiu a reeleição, foi dificultada porque ele se deu sem mobilização e "sem fazer-se notar", como assinalou um observador. (4) O silêncio provocou confusão a direita e a esquerda. Dez meses antes da reeleição, a revista Veja publicava que Lula seria derrotado porque, de acordo com pesquisa do Ibope, 40% do apoio obtido em 2002 tinha se esfumado e a "política assistencialista" não estava conseguindo segurar o eleitor de baixa renda. "A disputa eleitoral de verdade se dará entre Serra e Alckmin", escrevia Veja, mesmo avisando que previsões de longo prazo falhavam tanto quanto as meteorológicas. (5) Abertas as urnas, Oliveira ainda duvidava da "interpretação corrente" segundo a qual "o Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e ricos". "Seria ótimo, se fosse plausível que os 40% de votos de Alckmin foram dos 'ricos', e que a votação de Lula foi exclusivamente dos 'pobres'", escreveu Oliveira sobre o primeiro turno. (6)

A origem do mal entendido é dupla. De um lado, houve um deslocamento subterrâneo de eleitores não de baixa renda, mas de baixíssima renda, o qual passou despercebido, de outro, porque se deu de modo concomitante ao estardalhaço em torno do "mensalão", escândalo que teceu, a partir de maio de 2005, um cerco político-midiá tico ao presidente, deixando-o na defensiva por cerca de seis meses. (7) No período do "mensalão", o governo efetivamente perdeu parcela importante do suporte que trazia desde a eleição de 2002. Nas camadas médias, essa rejeição desdobrou-se numa forte preferência por um candidato de oposição a presidência em 2006. "Entre os brasileiros de escolaridade superior, a reprovação a Lula deu um salto de 16 pontos percentuais, passando de 24% em agosto para 40% hoje", escrevia a Folha de S. Paulo em 23 de outubro de 2005.

Três meses depois, porém, enquanto os mais ricos, seguindo na linha anterior, optavam em massa (65%) pelo então pré-candidato do PSDB, entre os de renda familiar de até cinco salários mínimos ocorria uma inflexão, com um aumento dos índices de satisfação a respeito do mandato de Lula. (8) Sobretudo no fundo da sociedade, onde circulam personagens de escassa visibilidade, houve uma crescente inclinação, desde pelo menos o inicio de 2006, no sentido de manter no Palácio do Planalto o ex-retirante pernambucano que tinha as mesmas origens dos seus recém-apoiadores. (9) A divergência entre os estratos de renda ira crescer ao longo de 2006, e os números encontrados pelo Ibope perto do primeiro e do segundo turnos expressam uma disputa socialmente polarizada, como mostram as Tabelas 1 e 2 (10). Nelas, a disposição de sufragar em Lula da parcela mais pobre inverte-se de maneira linear à medida que aumenta o rendimento, de modo que os mais ricos dão folgada maioria a Alckmin.





O que atrapalhou a compreensão e levou analistas como Oliveira a considerarem pouco plausível que os quase 40 milhões de votos em Alckmin no primeiro turno fossem apenas dos "ricos" e a dualidade brasileira, que grosso modo transforma em "classe média" todos (ai incluídos setores assalariados de baixa renda) os que não pertencem a metade da população que tem baixíssima renda. Lula foi eleito, sobretudo, pelo apoio que teve no segmento de baixíssima renda, enquanto Alckmin contou, além do voto dos mais ricos, com certa sustentação na fatia de eleitores de classe media baixa, que vagamente corresponde ao que os especialistas de mercado chamam de "classe C". Na faixa de mais de dois a cinco salários mínimos de renda familiar mensal, por exemplo, Alckmin quase empatava com Lula às vésperas do primeiro turno (Tabela 1), mas entre os eleitores de baixíssima renda (até dois salários mínimos de renda familiar mensal), Lula aparecia com uma vantagem de 26 pontos percentuais sobre Alckmin. Por isso, e verdadeira a interpretação de que o Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e ricos.

A polarização social do pleito deu-se pela implantação de Lula entre os eleitores de baixíssima renda, visível desde o primeiro turno, assim como a de Alckmin, entre os eleitores de renda mais alta (acima de dez salários mínimos de renda familiar mensal).

Os dados mostram que o lulismo foi expressão de uma camada social específica, e o descolamento entre eleitores de baixíssima renda e de "classe média", que apareceu nos debates pós-eleitorais sob a forma de "questionamento do real papel dos chamados 'formadores de opinião'" (11), outorgou um caráter único à eleição de 2006. Em perspectiva comparada, as cientistas políticas Denilde Oliveira Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky observaram que em 2002 o voto em Lula "não estava especialmente associado com nenhum estrato social", enquanto em 2006 "os eleitores de classe baixa se mostram significativamente mais inclinados a dar seu voto a Lula". (12) Na realidade, o único caso anterior de polarização por renda em eleições presidenciais, desde a redemocratizaçã o, surgira no segundo turno de 1989, sendo que naquela ocasião a candidatura Lula estava, não por acaso, no lado oposto da linha que dividia pobres e ricos, como notaram Wendy Hunter e Thimoty J. Power. (13) Enquanto Fernando Collor de Mello alcançava vantagem de dez pontos percentuais na faixa de eleitores que recebiam até dois salários mínimos de renda familiar mensal, no segmento mais alto quem obtinha essa vantagem era Lula (Tabela 3).



Se no primeiro turno de 1989 já havia uma nítida tendência de crescimento do apoio a Collor com a queda da renda, levando a uma concentração do voto nele entre os mais pobres, no campo oposto ("classe média") ocorria uma dispersão de votos entre Lula, Brizola, Covas e Maluf, não caracterizando, ainda, a polarização, que viria a ocorrer no segundo turno. (14) Em entrevista concedida depois daquele pleito, Lula afirmava: "A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade... Nós temos amplos setores da classe média com a gente - uma parcela muito grande do funcionalismo público, dos intelectuais, dos estudantes, do pessoal organizado em sindicatos, do chamado setor médio da classe trabalhadora. " (15)

Consciente do peso eleitoral dos "mais desfavorecidos" , ele acrescentava: "A minha briga é sempre esta: atingir o segmento da sociedade que ganha salário mínimo. Tem uma parcela da sociedade que é ideologicamente contra nos, e não há porque perder tempo com ela: não adianta tentar convencer um empresário que é contra o Lula a ficar do lado do trabalhador. Nós temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida". (16)
Em trabalhos sobre a eleição de 1989, notei, entretanto, que a vitória de Collor não decorria apenas de promessas fáceis. Havia uma hostilidade às greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 até às vésperas da primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo maior. Observava-se um aumento linear da concordância com o uso de tropas para acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um mínimo de 8,6%, entre os que tinham renda familiar acima de vinte salários mínimos, a um máximo de 41,6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso era de apenas dois salários mínimos (Tabela 4). Em outras palavras, ao contrário do esperado, "os mais pobres eram mais hostis às greves do que os mais ricos". Em parte, e essa inversão que faz a nova hegemonia parecer "às avessas".

De André Singer

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