A época, assinalamos que a resistência às greves e à candidatura Lula, manifestada por eleitores de baixíssima renda, estava associada, além do mais, a uma autolocalização intuitiva à direita do espectro ideológico(17).
Não obstante, tratava-se de uma direita peculiar, uma vez que favorável à intervenção do Estado na economia, como se pode ver na Tabela 5. Como resolver a aparente contradição? Sugerimos a interpretação de que os eleitores mais pobres buscariam uma redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por meio de uma intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem.
Raízes sociais e ideológicas do Lulismo - Parte 2
Para eleitores de menor renda, a clivagem entre esquerda e direita não estaria em ser contra ou à favor da redução da desigualdade e sim em como obtê-la. Identificada como opção que colocava a ordem em risco, a esquerda era preterida em favor de uma solução pelo alto, de uma autoridade já constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o sentido da adesão intuitiva à direita (muitas vezes entendida como o que e direito ou como sinônimo de governo versus oposição) no espectro ideológico e tornaria inteligível o viés desfavorável a Lula.
O modelo de comportamento político desenhado acima tem antecedentes clássicos. Marx, em O 18 Brumario de Luis Bonaparte18, revela que a projeção de anseios em uma força previamente existente, que deriva da necessidade de ser constituído como ator político desde o alto, e típica de classes ou frações de classe que têm dificuldades estruturais para se organizar. A natureza do vínculo esclarece por que o seu surgimento sempre causa surpresa. Como eles "não podem representar-se, antes tem que ser representados"(19), aparecem na política como raio em céu azul, uma vez que surgem de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas quando ela se dá nos moldes típicos do século XIX, isto é, dos partidos e movimentos de classe. O fato de Collor ter decepcionado a base social que o elegeu ao provocar a recessão de 1990/1991, levando a perda de suporte que facilitou o impedimento em 1992, não mudou a estrutura de comportamento político que o pleito de 1989 iluminara. Em 1994 e 1998, o "conservadorismo popular", acionado pela inflação e pelo medo da instabilidade, venceu Lula outra vez. Era relativamente claro que havia um poder de veto das classes dominantes, o qual residia na capacidade de mobilizar o voto de baixíssima renda. O que não se distinguia com nitidez eram as raízes ideológicas do mecanismo, embora os levantamentos de opinião indicassem permanente supremacia conservadora na distribuição do eleitorado entre esquerda e direita. O campo da direita aparecia sempre tendo uma adesão 50% superior ao da esquerda, como se observa no Quadro 1, desequilíbrio que decorria da inclinação dos eleitores de menor renda para a direita.
Nesse sentido, as derrotas de Lula em 1994 e 1998 podem ser entendidas como reedições de 1989, apesar de a estabilidade monetária ter se sobreposto, em 1994, aos argumentos abertamente ideológicos utilizados por Collor (ameaça comunista) em 1989. Tal como em 1989, as duas campanhas de Fernando Henrique Cardoso mobilizaram os eleitores de menor renda contra a esquerda. Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gustavo Venturi demonstraram que, na esteira do Plano Real, o melhor resultado de Lula em 1994 ocorreu entre os estudantes, entre os assalariados registrados com escolaridade secundária ou superior e entre os funcionários públicos. Já os trabalhadores sem registro formal, portanto, desvinculados da organização sindical, deram os melhores resultados a Fernando Henrique(20).
Em 1998, a coligação vencedora procurou convencer, com sucesso, os eleitores mais pobres de que Cardoso seria o melhor condutor do país em meio à crise financeira internacional que ameaçava a estabilidade conquistada quatro anos antes(21). De acordo com Tarso Genro, "boa parte das massas excluídas simplesmente repercutiram esta estratégia manipuladora" .... Para Genro, em 1998 "pesou significativamente, mais do que ocorreu com a eleição de Collor, uma grande parte da população marginalizada, lumpesinata ou meramente excluída do mundo da Lei e do Direito"(22).
Em decorrência, os argumentos da campanha de Lula de que Fernando Henrique tinha abaixado "a cabeça para os banqueiros e agiotas internacionais ..., aumentou os juros ... e as empresas estão fechando e demitindo"(23 ) não atraíram mais do que os cerca de 30% de votos validos que pareciam, então, constituir o teto do candidato,quando, na realidade, eram o teto da esquerda, socialmente limitada pela rejeição do subproletariado no extremo inferior de renda.
Mesmo em 2002, depois de unir-se a um partido de centro-direita, anunciar um candidato a vice de extração empresarial, assinar uma carta-compromisso com garantias ao capital e declarar-se o candidato da paz e do amor, Lula tinha menos intenção de voto entre os eleitores de renda mais baixa do que entre os de renda superior. Hunter e Power notaram corretamente que "em suas quatro corridas presidenciais entre 1989 e 2002, a principal base de apoio a Lula estava entre os eleitores dos níveis superiores de escolarização nos Estados mais urbanizados e industrializados do Sul e do Sudeste"(24). Em suma, a base social de Lula e do PT expressavam as características da esquerda em uma nação cuja metade mais pobre pendia para a direita.
Só depois de assumir o governo, Lula obteve a adesão do segmento de classe que buscava desde pelo menos 1989. "Lula perdeu intenções e, provavelmente, votos entre alguns de seus eleitores 'tradicionais', 'decepcionados' com os 'escândalos'. Substituiu-os, porém, e compensou as perdas, com votos de 'não-eleitores', pessoas que nunca haviam votado nele antes", afirma Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi(25).Entre a eleição de 2002, comemorada como sendo a da demorada ascensão da esquerda em país de tradição conservadora, e a reeleição de Lula por outra base social e ideológica, em outubro de 2006, operou-se uma transformação que se faz necessário entender.
As bases Materiais do Realinhamento ... as primeiras pesquisas feitas logo após o começo do governo captaram uma nítida mudança nas atitudes dos eleitores de classe popular, apontando para o aumento de sua auto-estima e da confiança, de que o Brasil iria melhorar, agora que as políticas de governo passariam a ter outra intenção e finalidades:um governo diferente, com gente diferente, fazendo coisas diferentes(26). Mas só três anos depois da posse em primeiro de janeiro de 2003,quando outro pleito já apontava no horizonte, e que tais "mudanças nas atitudes" se expressaram na forma de uma adesão que salvou o presidente da morte política a que parecia condenado pela rejeição da classe média.
Uma explicação para esse lapso de tempo emana da própria análise de Coimbra. De acordo com ela, o "fundamento" da aprovação ao governo, que por sua vez levou ao voto em Lula em 2006, "foi a sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)"(27). Essa "sensação" não caberia no começo do mandato, marcado por política econômica recessiva. No entanto, a partir do final de 2003, com o lançamento do Programa Bolsa Família (PBF), inicia-se uma gradual melhora na condição de vida dos mais pobres. No princípio, apenas unificação de programas de transferência de renda herdados da administração Fernando Henrique, o qual, por sua vez, copiara a fórmula de governos petistas, aos poucos a quantidade de recursos destinados ao PBF o converteu em uma espécie de renda mínima para todas as famílias brasileiras que comprovassem situação de extrema necessidade. Em 2004, o PBF recebeu verba 64% maior e, em 2005, ano do "mensalão", teve um aumento de outros 26%, mais do que duplicando o número de famílias atendidas, de 3,6 milhões para 8,7 milhões, em dois anos. Entre 2003 e 2006, a Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de R$ 570 milhões de reais para 7,5 bilhões de reais, atendendo a cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006 (28).
Diversos estudos encontraram indícios de que o PBF teve influência nos votos recebidos por Lula em 2006. Elaine Cristina Licio e colaboradores verificaram, por meio de survey, "no que se refere a atitude dos beneficiários do Programa", que "a porcentagem de voto em Lula foi cerca de 15% maior no primeiro e segundo turnos" em comparação com a obtida na média do eleitorado(29). Em segundo lugar, Yan de Souza Carreirão relaciona a alta votação de Lula nas regiões nordeste e norte com o fato de o programa ter-se concentrado naquelas áreas. Lula teve, no primeiro turno, por exemplo, cerca de 60% de votos no Nordeste e apenas 33% no Sul, sendo que o investimento do PBF na primeira região foi três vezes maior do que na segunda (30). Em observação mais segmentada, Nicolau e Peixoto notaram que "Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais recursos per capita do Bolsa Família"(31), mostrando a repercussão do programa nos chamados grotões, tipicamente o interior do Norte/Nordeste, que sempre fora tradicional território do conservadorismo. Por fim, vale notar que, de acordo com Coimbra, entre os que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de renda baixa, "o público alvo por excelência do Bolsa Família", pois em geral são as mães que recebem o benefício(32).
De André Singer
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