Assim, soa consistente a afirmação de que o PBF cumpriu um papel na vitória de Lula. Porem, "a importância do Bolsa Família não deve ser subestimada e nem exagerada", adverte Coimbra. "Sozinho não bastaria para explicar o resultado da eleição" (33), diz o diretor do Vox Populi. Claudio Djissei Shikida e colaboradores argumentam que raciocínios centrados no local de votação correm o risco de apenas mostrar a coincidência geográfica de dois fatores, a saber, a presença do PBF, dada a pobreza do lugar, e o voto em Lula, mas não a sua relação causal. A Bolsa Família foi obviamente destinada em maior proporção às regiões pobres e aos municípios de menor IDH. Mas o fato de a votação em Lula ter sido maior nessas regiões e municípios não implica que ela fosse causada pelo PBF ou só por ele. Fazendo uso de outro instrumental estatístico para compulsar as tendências municipais, Shikida e colaboradores concluem:
O PBF mostrou alguma evidência de impacto positivo na eleição, porém os resultados não se mostraram robustos. Mesmo se significativo fosse, o valor do estimador seria bem menor do que o necessário para que essa fosse a variável-chave para a compreensão da eleição de Lula. (34)
Shikida e colaboradores sugerem que o controle dos preços, como um componente central do aumento do poder de compra entre as camadas pobres, pudesse ser mais explicativo da virada ocorrida em 2006. Chamam a atenção, por exemplo, para o fato de que entre 2003 e 2006, a cesta básica subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre e São Paulo, mas, em Recife e Fortaleza, a variação foi de 4% e de -3%. Terá sido coincidência Lula ter perdido no Rio Grande do Sul e em São Paulo nos dois turnos, ao passo que no Estado de Pernambuco recebeu 82% dos votos no segundo turno e no Ceara, 75%. (35)
Na mesma linha, de mirar além da Bolsa Família, Hunter e Power lembram que o aumento real de 24,25% no salário mínimo durante o primeiro mandato teve um impacto mais abrangente do que o PBF. Além disso, a Bolsa Família e a elevação do salário mínimo, somadas, dinamizaram as economias locais menos desenvolvidas,...que dependem pesadamente de despesas pessoais de pequena escala para o seu sustento. Assim, não e surpreendente que as vendas do varejo tenham subido dramaticamente nos últimos três anos no norte e nordeste do Brasil...Também não e surpreendente que essas sejam as duas regiões nas quais o comparecimento eleitoral e o apoio a Lula tenham crescido em 2006 comparado a 2002. (36)
O primeiro aumento importante do salário mínimo ocorreu em maio de 2005, e é razoável imaginar que a poderosa combinação Bolsa Família-salário mínimo tenha demorado alguns meses para produzir efeitos. Mas além do aumento obtido pelos milhões que recebem um salário mínimo da Previdência Social, outra possibilidade aberta aos aposentados, as vezes principal fonte de recursos em pequenas comunidades, foi o uso do crédito consignado. O crédito consignado fez parte de uma série de iniciativas oficiais que tinha por objetivo expandir o financiamento popular, que incluiu um aumento expressivo do empréstimo à agricultura familiar, do microcrédito e da bancarização de pessoas de baixíssima renda.
Criado em 2004, o crédito consignado permitiu aos bancos descontar empréstimos em parcelas mensais retiradas diretamente da folha de pagamentos do assalariado ou do aposentado. A redução do risco decorrente do pagamento garantido acarretou uma queda em quase treze pontos percentuais da taxa de juros, e, em 2005, depois de crescer quase 80%, o crédito consignado colocava em circulação dezenas de bilhões de reais, usados, em geral, para o consumo popular. Ainda no capítulo da assistência social, com a promulgação do Estatuto de Idoso, em janeiro de 2004, a idade mínima para receber o Beneficio de Prestação Continuada (BPC), que paga um salário mínimo para idosos ou portadores de necessidades especiais cuja renda familiar per capita seja inferior a 1/4 de salário mínimo, caiu de 67 para 65 anos. Em 2006, 2,4 milhões de cidadãos recebiam o BPC.
Além dessas medidas de alcance geral, que propiciaram a ativação de setores antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semi-árido etc. favoreceram o setor de baixíssima renda. Carreirao reproduz um cruzamento realizado pelo Datafolha em junho de 2006, que mostra a influência de ser atendido por programa governamental sobre a disposição de reeleger o presidente. Os números mostram que a intenção de voto em Lula pulava de 39%, na media, para 62%, quando o entrevistado participava de algum programa federal. (37)
O tripé formado pela Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do credito, somado aos referidos programas específicos, resultaram em uma diminuição significativa da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar. E isso que Marcelo Neri chama de "o Real de Lula": "no biênio 1993-1995 a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria cai 18,47% e, no período 2003-2005, a mesma cai 19,18%." (38)
Em particular no ano de 2005, quando eclodiu o escândalo do "mensalão", ocorreu, segundo classificação de Waldir Quadros, a primeira redução significativa da miséria desde o Plano Real (39), presumivelmente em consequência do conjunto de medidas tomadas pelo governo Lula. Assim, enquanto os atores políticos tinham a atenção voltada para a sequência de denúncias do "mensalão", o governo produzia em silêncio o "Real do Lula" que, diferentemente do original, beneficiava, sobretudo, a camada da sociedade que não aparece nas revistas.
Razão de classe e ideologia
Examinadas em seu conjunto, as ações governamentais do primeiro mandato vão muito além de simples "ajuda" aos pobres. Sem falar nos programas específicos, o aumento do salário mínimo, a expansão do crédito popular com aumento da formalização do trabalho (o desemprego caiu de 10,5% em dezembro de 2002 para 8,3% em dezembro de 2005) (40) e a transferência de renda, aliados a contenção de preços, sobretudo da cesta básica (e em alguns casos deflação, como decorrência da desoneração fiscal), constituem uma plataforma no sentido de traçar uma direção política para os anseios de certa fração de classe. Não apenas porque objetivamente foram capazes de aumentar a capacidade de consumo de milhões de pessoas de baixíssima renda, como atesta o acesso em grande escala à "classe C", mas também porque sugerem um caminho a seguir: manutenção da estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo para os setores de baixa renda. Nesse sentido, tais ações colocam Lula à frente de um projeto, que e compatível com aspectos de sua biografia.
Coimbra, orientador de diversas pesquisas quantitativas e qualitativas no período, chama a atenção para o fato de Lula ser o político de origem mais humilde a ter chegado ao topo do sistema, assim como para o fato de "a intensa campanha negativa que sofreu em suas tentativas anteriores" ter feito dele alguém que mexeu com a "auto-imagem e o amor-próprio" do eleitorado popular (41). Convém lembrar que Lula é o primeiro presidente que viveu a experiência da miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na presidência, para a realidade dos miseráveis. Por isso, é plausível a suspeita de Francisco de Oliveira de que a eleição de 2006 comprove ter Lula se elevado "à condição de condottiere e de mito". (42)
Oliveira acrescenta, entretanto, que é um tipo de liderança que "despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade", o que leva o autor a questionar a natureza da hegemonia que estaria surgindo e a propor que ela agiria às avessas, isto é, para consolidar a "exploração desenfreada", em lugar de minar o modelo superexplorador. À primeira vista, um lulismo despolitizante seria compatível com a "síndrome do Flamengo", hipótese formulada por Fabio Wanderley Reis para explicar a ascensão do MDB nos anos de 1970 e depois generalizada como visão estrutural da política brasileira. Esse ponto de vista sustenta que um eleitorado de baixa escolaridade terá necessariamente que orientar-se por "imagens toscas" (43), não se devendo esperar que ele esteja informado das orientações substantivas adotadas pelos atores nem que se guie por elas. Da mesma maneira que o voto popular no MDB não simbolizava, para espanto do senso comum, rejeição ao governo militar, o voto em Lula não representaria qualquer tipo de opção ideológica, antes pelo contrario, seria fruto de uma desideologizacao. As opções populares, regidas por mecanismos de identificação acionada por imagens difusas, nada expressariam de substantivo.
De André Singer
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