Quando se iniciou a Operação Lava- Jato, ela foi justamente saudada como uma esperança de superação de uma estratégia liberal ou neoliberal de enfrentamento da corrupção: pela primeira vez, estava se colocando no primeiro plano do processo de investigação as grandes empresas corruptoras, a partir dos avanços legais conquistados por iniciativa do governo Dilma. A estratégia liberal ou neoliberal de combate à corrupção, ao contrário, centra-se no entendimento de que a corrupção é um fenômeno exclusivamente estatal e de que, portanto, a diminuição do Estado é a estratégia principal para combatê-la.
Mais além disso, ela colocava no centro as relações mercantis entre os grandes lobbies de interesses privados e o processo de eleições no Brasil, o trânsito e a organização de redes de corrupção através do financiamento empresarial de eleições e partidos.
Hoje, tendo sempre como referência os padrões republicanos e democráticos, é preciso tomar e organizar uma posição firme de denúncia da corrupção da Operação Lava Jato como condição para se realizar o devido processo legal de investigação, julgamento e punição dos graves crimes de corrupção cometidos contra a Petrobrás e o povo brasileiro.
Já há elementos suficientes para formar um juízo que um grupo de procuradores e uma parte da Polícia Federal, sob a coordenação do juiz Moro, corrompe a Justiça ao ser instrumento de um partido e violar sistematicamente o pacto constitucional democrático. A concepção que organiza esta estratégia de combate à corrupção é a de um Estado policial.
Todo Estado policial é, em seus fundamentos de legitimidade, anti-republicano porque é fundado em um facção. A concepção democrática de republicana interdita como antinômica, isto é, como contrária às suas próprias razões, a idéia de que a virtude da república pode ser conduzida pelo arbítrio de um, seja ele um juiz supremo ou meramente um juiz, uma empresa ou um cartel de comunicação ou por um dos poderes da República.
O fato de se autonomear como a instância suprema do combate à corrupção não autoriza ninguém a agir em nome de todos e contra as leis constitucionais. Ora, a ditadura militar de 1964 não já sujou o manto do combate à corrupção com o mesmo artifício?
Sete arbítrios e uma corrupção
As consciências democráticas e republicanas brasileiras já podem documentar sete violações sistemáticas à Constituição democrática e ao devido processo legal feitas no transcurso da Operação Lava jato.
A primeira violação foi já o gravíssimo vazamento seletivo de trechos de delações premiadas para beneficiar a candidatura Aécio Neves nos dias finais da eleição presidencial de 2014. O juiz Moro não se pronunciou, o inquérito de investigação do vazamento não teve curso. O segredo judicial do processo de Justiça foi violado. A partir daí, este vazamento seletivo, sempre para atingir adversários do PSDB, instrumentalmente manipulados em datas claramente simbólicas, tornou-se a regra: diária, ostensiva, criminosa. O que fez o Juiz Moro? Ele próprio cobriu-se inteiramente do manto da mídia de oposição, recebendo prêmio de uma empresa que se beneficia ilegalmente destes vazamentos!
A segunda violação foi o engajamento dos coordenadores pela Polícia Federal e mesmo de um Procurador da República em campanhas públicas de oposição e até difamatórias da Presidente da República. Tornado público esta postura afrontosa do mínimo critério de isenção, eles deveriam ter sido imediatamente afastados da coordenação e da participação na investigação da Operação Lava- Jato.
A terceira violação foi o uso de prisões prolongadas e até preventivas como modo de forçar delações premiadas. A prisão preventiva, formada no juízo de que o preso a ser julgado e condenado poderia, por seu poder, dificultar as investigações , baseia-se num arbítrio extremado e perigoso, se não há claramente uma comprovação deste ilícito. A partir daí, nenhum cidadão estaria livre de vir a ser preso em processos que antecipam a sua culpa antes do julgado.
A centralidade conferida ao instituto de delação premiadas e o seu uso arbitrário – utilizando-se de um delator reincidente e que já havia faltado com a verdade em seu primeiro processo de delação- , a sua publicidade, a formação de juízos públicos sem a comprovação documental de acusações extravasam o âmbito de uso deste procedimento de investigação no devido processo legal.
A quarta violação é a indevida nacionalização do poder de um juiz municipal sobre todo o território nacional através de um artifício da origem local da denúncia. O caso é nacional, atinge centralmente a Petrobrás, atinge várias empresas que tem sedes em outros centros, abarca políticos de representação nacional mas o controle das operações continua ferreamente exercido pelo hoje tristemente famosa “República do Paraná”. Há evidências por todos os lados das ligações dos que dirigem a Operação Lava Jato com o PSDB do Paraná. E espanta que só agora, após tudo o que aconteceu, tenham vindo a público as fartas e bem documentadas denúncias de corrupção, envolvendo o governador Beto Richa e seu grupos palacianos.
A quinta violação do devido processo legal vem exatamente desta ligação escandalosa dos sujeitos da Operação Lava Jato com o PSDB. O único grão-tucano citado no processo é um ex-presidente do PSDB que está morto! Nenhuma outra relação? E o então tesoureiro do PSDB será investigado? Youssef não mediava relações com o PSDB? O processo na sua origem está direcionado a eximir ou colocar à margem de investigação e suspeição o PSDB.
A sexta violação é o desrespeito à devida separação legal entre o processo de investigar, de acusar e de julgar que vem ocorrendo através das associações consorciadas entre grupos da Polícia Federal, grupos de procuradores e juiz. Ora, quem investiga não pode agir segundo quem acusa e, muito menos, quem julga não pode pretender dirigir a investigação ou acusar. O escândalo judicial chega ao ponto em que o advogado de defesa do delator original também é figura vinculada ao PSDB do Paraná. Há já relatos públicos de que houve delações escritas por quem tomava o depoimento!
A sétima violação, que veio em um crescendo, foi a violação pela Polícia Federal, autorizada pelo juiz Moro, dos computadores dos advogados de uma empresa cujos diretores foram presos. A própria OAB nacional e a OAB de São Paulo pronunciaram-se publicamente contra mais esta violação.
Mas a suspeição de ausência mínima de isenção que atinge diretamente o juiz Moro é o seu reiterado juízo público da culpabilidade dos acusados antes mesmo do processo de julgamento, antecipando-se ao direito de defesa livremente exercido. Já se diagnosticou a espetacularização do processo que não é externa mas intrínseca a sua própria dinâmica. Inverte-se o processo: prende-se porque se presume que o acusado é culpado e não porque ele foi condenado.
Estas sete violações constitucionais não são nada mais nada menos do que a documentação do vício de corrupção que hoje contamina toda a Operação Lava Jato conduzida pela “República do Paraná”: ela está corrompida por que toma um partido na República e não toma o partido da República, isto é, do interesse geral da República. Hoje ela claramente visa menos a corrupção e mais a destruição facciosa de um partido que se constituiu no pluralismo da vida democrática brasileira.
Um Estado Policial?
A prova deste paradigma de uma concepção de Estado policial no combate à corrupção está nas dez propostas do Ministério Público Federal para o combate à corrupção, tornadas públicas em março deste ano. As dez propostas são apresentadas como incidindo sobre a transparência e presença, efetividade, celeridade e eficiência no processo de punição da corrupção.
Algumas destas propostas são consensuais, refletem reflexões sobre o combate à corrupção realizados na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla), coordenado pelo Ministério da Justiça, incidem sobre questões tratadas em projetos de lei enviados pelo governo Dilma ao Congresso Nacional.
São elas: a criminalização de enriquecimento ilícito de agentes públicos, a criminalização do caixa 2 nas eleições, aumento das penas e defesa da caracterização como crimes hediondos da corrupção de altos valores, a reforma do sistema de prescrição penal, a celeridade nas ações da improbidade administrativa,aumento da eficiência e da Justiça nos recursos no processo penal, o confisco alargado das riquezas resultantes de crimes julgados e comprovados de corrupção.
O que galvanizou a atenção pública, no entanto, sendo condenado praticamente por unanimidade pela consciência jurídica democrática do país foi a proposta 8 que prevê a “ introdução da ponderação dos direitos e interesses em jogo na avaliação da exclusão da prova, o que está em harmonia com a legislação de diversos países democráticas, inclusive a norte-americana, de onde foi importada a regra da exclusão da prova ilícita e da prova derivada da prova ilícita”. Ora, se cabe ao arbítrio de quem julga a oportunidade da consideração da prova obtida por meio ilícito – isto é , que atentou contra a legalidade e os direitos legais e até os direitos humanos de quem está sendo acusado – então, já não se está mais em uma democracia que se fundamenta na universalidade do respeito aos direitos do cidadão. Então, pode tudo para se obter uma prova? Pode-se violar o segredo judicial, a presunção da inocência, forçar os limites do devido processo legal, invadir domicílios, pressionar ilegalmente o processado para obter confissões, transgredir a ética que assegura os direitos dos advogados que fazem a defesa? Pode-se torturar - fisicamente ou psicologicamente - alguém que se presume culpado?
Será que a Operação Lava Jato, sob a cobertura do simulacro midiático de que o PT é a causa da corrupção no Brasil, já está exercendo na prática esta concepção?
Ora, ao que parece, o que se pretende é inserir na democracia brasileira procedimentos de exceção, já denunciados inclusive pela ONU, adotados pelos EUA para combater ameaças de terrorismo e cujo símbolo maior é a prisão de Guantánamo.
Se a proposta 8 é o sintoma escandaloso de uma concepção policialesca do combate à corrupção, o conjunto da proposta trai igualmente o seu princípio. Em uma concepção republicana e democrática do combate à corrupção, deve haver uma combinação virtuosa entre medidas de educação cívica, de prevenção, de investigação, de julgamento e punição exemplares. O centro das propostas do Ministério Público Federal está focado claramente na dimensão punitiva, dando a ela uma dimensão de quase exclusividade.
Mais sintomaticamente ainda, as propostas simplesmente não se pronunciam sobre a evidência escandalosa de que o financiamento empresarial das eleições e partidos está na origem da corrupção sistêmica no Brasil. Uma proposta de prevenção da corrupção teria que incidir, como uma de suas estratégicas chaves, exatamente aí.
A concepção autoritária do documento é visível também na forma como concentra nas autoridades estatais e não no controle democrático e cidadão sobre elas a dimensão fundante do combate à corrupção. Qualquer instituição estatal – inclusive a Procuradoria da República – pode ser capturada por interesses políticos ou econômicos e colocada a serviço destes interesses. Aliás, não há evidências de que isto ocorreu de forma grave durante os governos FHC- com o chamado “Engavetador Geral da República” – e continua a ocorrer nos governos estaduais do PSDB? Seria demasiado pedir à Procuradoria Geral da República que refletisse sobre esta possibilidade e apresentasse propostas para preveni-la?
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