quinta-feira, 18 de março de 2010

Os acacianismos neoliberais de José Serra



Não fosse o autor um perigoso aspirante à vaga de presidente da república do meu país, eu não daria a mínima atenção a esse artigo acaciano publicado hoje no Estado. Para começar, o título ("Prisioneiros da democracia") e a conclusão ("Sejamos todos cativos da democracia. É a única prisão que presta seu tributo à liberdade") são de um mau gosto terrível. Não somos prisioneiros nem cativos da democracia. A democracia não é nenhuma prisão. Muito sintomático, por outro lado, a escolha dessas imagens. Revela uma alma atormentada, autoritária e pervertida. O ghost-writer conseguiu interpretar bem o que se passa no intimo do chefe.

Democracia é o ar livre, a praça cheia de povo, a alegria das festas populares, o grito insano de uma criança recebendo um presente, a juventude se divertindo. Tem de ser uma pessoa muito doente para associar democracia e prisão.

Claro que se levarmos para o relativismo, tudo é prisão. O amor é uma doce prisão. A infância é uma prisão. A democracia é uma prisão. Eu entendo o que Serra quis dizer. Não foi maldade, naturalmente. Foi mau gosto, só isso.

Nem é disso que eu queria falar.

O que me impressionou mesmo foi o aspecto pomposo e vazio do texto. E partindo de quem se esperava tivesse algo de concreto a propor ao Brasil. Não, em vez disso, Serra nos empurra um discurso burocrático de Rottary Club! Desses que a gente finge ouvir enquanto entorna champagne num evento insuportavelmente chato, pensando que nem o néctar dos deuses compensaria o tédio mortal daqueles momentos. O discurso dura dez minutos, mas parece se prolongar por horas a fio. Você olha para os lados e vê somente mulheres feias e homens sisudos. Então você se levanta para ir ao banheiro, sonhando encontrar, escondida por trás de uma daquelas portas misteriosas, fumando um baseado com lábios carnudos, a filha subversiva e gostosa de alguma socialite. Será nossa vingança!

Serra conseguiu, enfim, realizar mais uma proeza. Publicou um enorme artigo em que não diz nada. Depois de declarar, certa feita, que é "contra chacina", agora afirma, no auge da democracia brasileira, que é favor da democracia. Parece alguém que adentre o maracanã lotado de flamenguistas, e queira chamar a atenção gritando para todo mundo ouvir:

- Ei! Eu sou flamengo também! Olhem para mim!

Nós já ficamos especialistas, todavia, em interpretar essas manifestações ultra pós-modernas. O certo seria que o Estadão publicasse, ao lado do artigo de Serra, um outro texto, explicativo, discorrendo sobre seu significado. É assim que se faz com algumas obras contemporâneas. A gente lê a explicação. Depois vê as obras.

Como o Estadão não o fez, façamo-lo agora. Os mais antigos manuais de redação nos dizem que todo texto deve ter um objetivo. Qual o objetivo, portanto, deste sonolento artigo de Serra, que tanto nos lembra os textos de seu correligionário, o doutor Fernando Henrique Cardoso? Com a diferença de que os textos de FHC são gordurosos. Os de Serra são magros (ou nem tanto). Qual o objetivo? Apenas comemorar os 25 anos da nova fase democrática? Ótimo. Objetivo nobre. Mas não seria uma oportunidade para Serra dizer ao povo brasileiro o que pensa fazer em seu governo? Mexeria no câmbio, conforme prometeu o presidente do seu partido? Faria alguma mudança nos programas sociais? Faria uma grande redução no contingente do funcionalismo público? Forçaria a adoção do sistema de cooperativas para a área médica e educacional?

O que me impressiona nesses artigos tucanos é sua retórica oca. O texto inicia assim: "O Brasil comemora hoje os 25 anos da Nova República. Isso quer dizer que celebra um quarto de século (...)" Reparem que Serra nos informa, brilhantemente, que 25 anos correspondem a um quarto de século... Realmente, trata-se de uma informação fundamental para se entender o significado de democracia.

Mas não é nada disso que eu quero falar.

Em 1964, a grande imprensa noticiava a vitória dos militares como um triunfo democrático. Os generais e os golpistas eram "os democratas que dominavam a nação".

Está claro, portanto, que a democracia, enquanto apenas uma palavra, pertence ao dono da palavra. Se os jornais diziam que o golpe de Estado que derrubou o presidente eleito João Goulart era um triunfo democrático, então era assim. Ponto final.

Ah, Deus! Não é isso ainda.

O que eu quero dizer é que esse artigo de Serra é uma xaropada. Uma empulhação reacionária. Qual o principal conceito que ele tenta nos vender? Esse trecho diz tudo:


Assim, repudiemos a simples sugestão de que menos democracia pode, em certo sentido, implicar mais justiça social. Trata-se apenas de uma fantasia de espíritos totalitários.

Quem sugeriu isso? À parte as firulas irritantes, como dizer "simples sugestão" em vez de "sugestão", e enfiar a expressão "em certo sentido" onde não precisava, vícios tipicamente tucanóides de linguagem, trata-se de mais um desses ataques enigmáticos de difícil interpretação.

Difícil, mas não impossível. Às vezes é melhor nem fazê-lo, porque a interpretação causa arrepios e mal estar. Serra desvaloriza a luta pela justiça social enquanto luta democrática. Seu texto ambíguo, cinzento, insinua que os espíritos que lutam por justiça social são "totalitários" . Por contraste, quem seriam os democratas? Os almofadinhas do Instituto Millenium?

De qualquer forma, é lamentável essa manifestação de arrogância conceitual, outro vício tucano. Democracia é conceito que remete à Antiguidade, e já passou pelas mais variadas formas de governo. Não é nenhuma prisão. É uma chave para abrir as portas que o egoismo e a brutalidade social estão sempre trancando. Democracia não é esse valetudo corporativo que a direita tenta há décadas nos impingir. Democracia é o regime onde o poder emana do povo, e se o povo, através de seus representantes, decidir que é preciso novos regulamentos para a mídia, então assim será, e será perfeitamente democrático.

Outra grande empulhação é tratar plebiscitos como antidemocráticos. A Constituição Brasileira prevê o uso de plebiscitos como um instrumento legítimo de consulta popular. Foi um crime hediondo contra a democracia o fato de Fernando Henrique Cardoso não ter submetido à consulta popular a mudança que pretendia (e fez) fazer na legislação eleitoral, instituindo a reeleição. É absolutamente hipócrita que a imprensa brasileira agora trate o uso de plebiscitos na América Latina como antidemocráticos.

Os subintelectuais da mídia não são proprietários do conceito de democracia, o que seria, aliás, uma ridícula contradição. A democracia é um conceito aberto, em evolução, complexo. Não é um estatuto do Millenium. Afinal, a moça subversiva que fuma um baseado atrás da porta, enquanto Serra discursa no Rottary Club, talvez tenha uma idéia de democracia mais rica, desenvolvida, criativa, mais humana enfim, do que a xaropada neoliberal e conservadora do governador de São Paulo.

De Miguel do Rosário

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