quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Imprensa tenta resgatar espírito da guerra fria

Se qualquer cidadão dos anos 50, habituado a ler jornais, entrasse numa máquina do tempo e visitasse o Brasil de hoje, encontraria um debate muito parecido ao de sua época. Estadão, Folha e Globo procuram colar no governo o adesivo do comunismo totalitário. E dá-lhe Cuba por toda parte. Muitos lembram, a todo momento, que militantes anti-ditadura não queriam a volta da democracia, e sim a implantação de um regime soviético no país. Esta é a tática mais capciosa, mais hipócrita, mais revoltante - desenterrar ideologias há muito sepultas por esses militantes, descontextualizando épocas e situações. Como se o florescimento dessas ideologias não fosse ligado umbilicalmente à derrota inflingida à democracia por militares e mídia. Se é para lembrar o passado e a bandeira de cada um, seria honesto informar que esta mesma imprensa defendeu o golpe de Estado, através da tática mais vil de todas. Mentindo. Afirmando que o golpe era democrático. Que era uma vitória das forças da democracia! Assim eram as manchetes!

A imprensa não apenas ajudou os militares a violarem a democracia brasileira. Ela também contribuiu para solapar o próprio conceito de democracia. Deliberadamente inoculou enorme confusão ideológica no espírito nacional, afirmando que o preto era branco e o branco, preto.

Os jovens de dezessete anos que decidiram lutar contra a ditadura, como era o caso da ministra Dilma Rousseff (que é o alvo principal desses ataques), haviam perdido a esperança na democracia. Aí está outra consequência nefasta do golpe: aniquilar nos espíritos jovens e idealistas a esperança, o sonho, a poderosa ingenuidade juvenil de achar que pode mudar o mundo - tão ingênua e tão poderosa que às vezes muda mesmo.

Ontem assisti trechos do debate na Câmara sobre o III Programa Nacional de Direitos Humanos. Todo mundo se manifestou fortemente favorável ao decreto presidencial e identificou, nos ataques que este sofreu da mídia, uma grande ofensiva conservadora. Os representantes dos diversos segmentos que participaram das conferências regionais e nacional mostraram-se bastante conscientes de que os meios de comunicação assumiram o protagonismo da oposição política ao programa, e que eles poderiam tirar alguma vantagem disso, trazendo o debate para um público maior. Demonstraram segurança de que a exposição os beneficia, porque têm os argumentos mais sólidos. Rechaçaram as críticas mais vulgares, que pretendem atribuir intenções ideológicas obscuras a projetos de lei que nada mais são que desdobramentos democráticos da própria Constituição Brasileira. Um surdo "oralizado", presidente de uma entidade ligada aos direitos humanos dos deficientes físicos, fez um discurso comovente afirmando, no entanto, que o sonho de seus representados não é esticar esse debate indefinidamente, e sim levá-lo a uma etapa mais avançada, ou seja, transformá-lo em leis e, sobretudo, em realidade prática.

Está claro, todavia, que a maioria das críticas ao programa de direitos humanos ganhou um ar caricatural, tendencioso, partidário. Os tucanos se retraíram nas críticas, mas assistem alegremente o incêndio no circo, o que é uma atitude ainda pior, uma covardia obsequiosa, malandra. A imprensa, de qualquer forma, conseguiu o que desejava. A histeria criada, com direito até a José Neumanne afirmando que por muito menos Goulart fora deposto e conclamando: e os militares, onde estão os militares?, criou núcleos extremistas de opinião, e a imprensa não procurou debelá-los. Ao contrário, atiçou-os, publicando cartinhas desinformadas, caluniosas, que associavam um programa elaborado cuidadosamente por elementos democráticos a ideologias soviéticas.

Em relação à mídia, os participantes do debate na Câmara disseram que a versão anterior do programa era ainda mais enfática em relação à necessidade de exercer um controle social sobre os meios de comunicação.

É preciso vestir as roupas da mídia para poder dialogar com ela. O programa de direitos humanos assinado por Fernando Henrique não metia medo porque a mídia sabia que a palavra final era sempre dela. Ela confiava no governo. Hoje não confia. FHC podia posar como defensor dos direitos humanos com toda a desenvoltura porque a midia e os segmentos conservadores sabiam que a decisão final sobre quais direitos seriam válidos e quais não seriam deles.

Além disso, não havia, em 1997 ou 2002, quando foram publicadas as primeiras versões do decreto, nenhuma intenção de desgastar o governo. Muito pelo contrário.

Há um outro item da agenda política que merece a nossa atenção redobrada. O chavismo foi transformado, pela mídia, e quiçá também por seus próprios erros (mesmo que bem intencionados) , numa bola de chumbo presa aos pés da esquerda democrática latino-americana. Na derrota de Frei por alguns milhares de votos podemos ver o peso chavista puxando o balão para baixo. O chavismo já não pertence à Chávez. Tornou-se um símbolo. Já não importa o que seja na realidade. Como símbolo, o chavismo exerce forte influência na América Latina. Uma influência negativa eleitoralmente. E por quê? Por que, dentro da Venezuela, Chávez tem amplos espaços para se defender. Ele se esquece, porém, que é atacado em outros países, onde não pode se defender e, portanto, a mídia pode pintá-lo, livremente, das cores mais escuras e tenebrosas. E depois de fazê-lo leva o boneco gigante à rua, para que todos o vejam, e diz: vejam, esse é monstro que deseja dominar a América Latina! Se vocês votarem em Eduardo Frei, em Cristina Kirchner, em Dilma Rousseff, ele atingirá seus objetivos!

Eu entrei em sites e blogs do Chile e constatei que é assim mesmo. Frei perdeu muitos votos para o antichavismo.

E o que é esse chavismo assustador, chamado inclusive de ditadura, apesar de na Venezuela vigorar o sufrágio universal?

Já lhes falei de uma conhecida com quem discuti muito asperamente essas questões. Ela é leitora e fã de Merval Pereira e, portanto, vocês imaginam que maravilha de opiniões ela tem sobre tudo. Para ela, não houve golpe em Honduras, e Merval foi o único a perceber isso. O único no mundo inteiro, diga-se de passagem. Então ela disse:

- Você acha que a Venezuela é uma democracia?

Mas não foi uma pergunta propriamente dita. Foi quase uma ameaça. Do tipo: "você terá a ousadia de afirmar, contra tudo que venho lendo no Globo há anos, que o Chávez não é um ditador odioso?"

Não se pode subestimar o poder midiático sobre a opinião pública, principalmente sobre a classe média. O Chile é um país de classe média, um pais culturalmente conservador, e a propaganda antichavista fez grandes estragos no prestígio da esquerda chilena junto aos segmentos sob influência de uma imprensa altamente sofisticada. Sim, porque a imprensa latino-americana é sofisticada - tecnologicamente, eu digo. As ditaduras que assolaram a região produziram enormes conglomerados ultramodernos que hoje se vêem ameaçados pela emergência de novas forças políticas e de uma nova configuração social.

A configuração política brasileira é muito distinta da chilena. Não somos um país conservador culturalmente, apesar dos esforços de César Maia em provar o contrário. Aliás cabem aqui algumas observações.

Eu li o tal ensaio de André Singer. Interessante, mas um bocado pretensioso. Tem coisas boas, mas baseia-se em premissas duvidosas. Há uma pesquisa, por exemplo, feita há alguns anos, que mostra o povão contrário às greves, enquanto a classe média e alta seria favorável. Isso é usado como prova de que o povão é de "direita". Errado. O povão é contra a greve porque é seu filho que irá ficar sem hospital em caso de greve na saúde pública. Irrita-me pensar que André Singer, ex-porta voz do governo, sempre usando terno e gravata de cinco mil reais, com seus quatro ou cinco planos de saúde, tenha construído um castelo em cima de bases conceituais tão preconceituosas. Também temos o conceito de "subproletariado" , que seria a nova massa eleitora de Lula, em oposição ao proletariado convencional. Que coisa mais vaga! Querem botar etiqueta de subproletariado em cem milhões de brasileiros! Valha-me Deus! Mistura-se o camelô que possui uma barraquinha de cachorro-quente ao pé da favela com o sujeito que administra trinta barracas de eletrônicos na Uruguaiana. O catador de latinhas de alumínio com o proprietário de quatro biroscas de sucesso. E assim vai.

Achei ofensivo ao trabalhador brasileiro ser chamado de "subproletariado" . Só porque não trabalha na Volskwagen? Não acho científico englobar uma quantidade tão heterogênea de profissões, mesmo que se as considere todas informais, num conceito que, além disso, é preconceituoso, pois as posicionam, ao menos linguisticamente, em patamar inferior ao proletariado comum.

Dito isto, creio que se faz muita confusão quando se tenta procurar pêlos conservadores no ovo popular. O povo pobre é ignorante, isso sim, como qualquer povo pobre do mundo. Não podemos confundir ignorância com conservadorismo político ou cultural. Pelo que eu pude observar com meus próprios olhos, o povo brasileiro não é conservador. Ele encara tranquilamente o homossexualismo - embora ainda exista muita violência contra homossexuais no Brasil. Maconha, aborto, raça, etc, em muitos aspectos temos um povo bastante progressista.

Não vejo como um povo tão apaixonado por festas coloridas, variegadas em seu formato, quase orgiásticas, um povo tão namorador, tão romântico, tão generoso, seja classificado por mauricinhos (mesmo que de esquerda) como "conservador" . Dependendo do ponto-de-vista, claro, todo mundo é conservador. Ou liberal.

O ensaio de Singer se aprofunda nessa questão bizantina, forçada, de querer classificar o nível de esquerdismo ou direitismo do povo. Vejam a tabela abaixo (clique para ampliar, como sempre):



Ã? Esses acadêmicos me dão um sono mortal. Escala de esquerda e direita de 1 a 10? Não é forçar a barra demais?

Discordei de quase tudo no artigo. Para fazer essa tabelinha de esquerda X direita, ele usa o conceito "ordem" para associá-lo à direita. Desde quando almejar a "ordem" é algo da direita? Pode-se tranquilamente dizer o contrário. Pega-se um conceito subjetivo, vivo, dialético, historicamente instável, como é o conceito de "esquerda", e tenta-se congelá-lo? Pior: tenta-se obrigar o povo a engoli-lo assim mesmo: duro, congelado, sem tempero? E aí o povo se recusa e então se diz que o povo é de "direita"?

Outros argumentos do ensaio também são débeis, como o que pretende provar que o eleitorado de Lula migrou da classe média para o povo. Tudo bem, concordo que Lula perdeu, de 2005 para cá, depois do mensalão, uma parte dos votos de classe média. Mas ganhou outros votos, também de classe média! O estudo tenta mostrar que Collor teve votos do povo e Lula da classe média, mas a tabela que traz não condiz com a tese. Singer quer forçar uma tese à revelia dos próprios dados que oferece.



A tabela acima não diz que Lula teve apenas votos da classe média. Informa que ele perdeu para Collor no segmento que ganha menos de 2 salários, mas teve 41%. Da mesma forma, quem ganha mais de 10 salários votou majoritariamente em Lula, mas Collor teve 40%. O problema de Singer é que ele usa números frios sem imaginação. Ele os esfria ainda mais. E tenta dissecar um corpo vivo, sensível, delicado, complexo, usando uma peixeira baiana.

De fato, em 2006 Lula ganhou de lavada no povão, e perdeu entre a turma do andar de cima. Mas as estatísticas enganam. Os números abaixo não trazem detalhes, como o fator regional: foi a classe média sulista, com ênfase em São Paulo, que deu votos ao PSDB.



Se o povão tinha "hostilidade" às greves, e por isso não votava em Lula, não é porque ele (o povão) era de "direita", e sim porque, repito aqui, eram suas crianças quem amargavam a falta de cuidados médicos. É claro que o povo era contra as greves. Um punhado de operários do ABC paulista, cujos salários correspondiam ao triplo do de um professor do ensino básico ou de um enfermeiro do serviço público, sabia o valor de uma greve para sua classe; o funcionário público com estabilidade no emprego mas um salário de fome, corroído cada vez mais pela inflação, também sabia o valor de uma greve; mas as crianças que morriam na porta dos hospitais fechados - em greve - não tinham nada a ver com isso! Para André Singer, todavia, o povo é de direita porque não gosta de greve... E daí ele usa esses dados como base para uma série de outras conclusões, as quais, por se originarem em premissas falsas, são igualmente artificiais.

Meus leitores sabem que prezo muito o uso de estatísticas. Mas eu gosto de números confiáveis, como os de comércio exterior, onde os volumes e valores são registrados minuciosamente na alfândega. Ou pesquisas eleitorais objetivas, onde se pergunta ao entrevistado: vota em x ou y? E o sujeito responde: voto em x. Esse tipo de estatística capenga, contudo, sem imaginação, não contribui em nada, a meu ver, para se compreender o processo político e eleitoral no país. Ao contrário, serve apenas para, mais tarde, alegar-se que o povo "contrariou as expectativas" e desmerecer o trabalho dos cientistas sociais. A ciência política deve buscar sempre amparar-se em dados objetivos, mas não deve nunca, sob o risco de se tornar uma matemática burra e inútil, esquecer que o mais importante, para entender a sociedade e seus anseios, continua sendo a intuição e o bom senso.

De Miguel do Rosário

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