quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ENTREVISTA: DANIEL MUNDURUKU, referência da literatura indígena brasileira


Daniel Munduruku, referência da literatura indígena brasileira

Autor de mais de 30 livros sobre a cultura dos povos nativos, Daniel Munduruku é considerado um dos mais influentes escritores da atual literatura indígena produzida no Brasil. Formado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, e doutorando em educação pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a escola brasileira ainda reproduz uma visão meticulosamente construída pelos colonizadores no século 16. Visão que, segundo ele, seria responsável pelo preconceito contra os índios.
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Presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), ONG voltada para a proteção dos conhecimentos tradicionais das aldeias, Munduruku foi também professor da rede estadual e particular de ensino, onde lecionou para crianças e adolescentes. Dentre os livros que escreveu para o público infanto-juvenil estão Coisas de Índio, O Sinal do Pajé e Meu Vô Apolinário – que ganhou menção honrosa do Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância, da Unesco.
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Em O Banquete dos Deuses – Conversa sobre a origem e a cultura brasileira, escrito em 2000 e relançado este ano pela editora Global, o autor se debruça sobre a problemática do preconceito em sala de aula, investiga as origens da visão deturpada que os professores fazem a respeito dos povos indígenas e aponta caminhos para uma educação humanista no Brasil. “Minha principal preocupação é libertar as crianças do preconceito”, diz.
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Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República, Daniel Munduruku é constantemente convidado a ministrar palestras e oficinas culturais na Europa e mantém um blog na internet (aqui). Nascido a 28 de fevereiro de 1964, em Belém do Pará, é casado com Tânia Mara, com quem tem três filhos, Gabriela, Lucas e Beatriz. Falei com ele desde sua casa, na cidade de Lorena, interior de São Paulo.
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Bruno Ribeiro Em seu livro O Banquete dos Deuses, você aborda o problema do preconceito contra o índio. De onde vem a dificuldade de aceitarmos ou assumirmos a cultura indígena como sendo parte da cultura nacional, ou seja, de nossa própria identidade?

Daniel Munduruku – Este livro foi escrito para apoiar os professores em sala de aula e ajudá-los a entender o que são os povos indígenas. É um suporte didático e filosófico que busca entender o Brasil de uma forma carinhosa, mas crítica. A meu ver, o grande problema do brasileiro é ter vergonha da sua ancestralidade, porque a nossa ancestralidade evoca os povos indígenas e africanos. Quando o povo se olha no espelho, vê um passado que ele renega, porque foi educado para renegar.
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O preconceito, neste caso, seria fruto da educação que recebemos em casa e na escola?
Durante muito tempo, a educação foi um instrumento importante na estratégia do Estado brasileiro de negar a existência dos povos indígenas. Somos educados para repetir a imagem do indígena transmitida no século 16, ou seja, uma imagem que reforça a visão estereotipada criada pelos colonizadores.
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Como você, quando estudante, absorvia a imagem negativa que era transmitida pela escola a respeito dos índios?

Frequentei a escola durante a ditadura militar, na década de 1970. Naquela época, as informações que eu tinha em sala de aula insinuavam que índio era atrasado, que índio era pobre, que índio era selvagem... Isso chegava até mim com um impacto muito violento. Passei a ter vergonha da minha cara, do meu cabelo, da minha origem... Eu não queria mais ser índio.
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Você diz que a visão negativa do indígena foi reforçada pelo regime militar. Por quê?

O governo via o indígena como um atraso ao progresso do País quando começou a abrir estradas na Amazônia. Porque os povos indígenas estavam em áreas onde as estradas tinham que passar ou porque estavam em terras que o governo havia vendido para investidores estrangeiros. Era preciso exterminar os índios para que a Amazônia se “modernizasse”. Aqueles que eles não conseguiam exterminar, tinham que ser “incorporados” à sociedade, ou seja, tinham que ser “educados” como brancos, tinham que ser “civilizados” à força. O discurso não era explícito, mas a escola reproduzia esta ideia.
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E essa ideia persiste até hoje?

Até hoje. Costumo dizer que o Brasil é um país adolescente. Não é velho como a Europa, mas também não é mais criança. É um adolescente e, como tal, está vivendo uma crise de identidade.
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Você acabou de contar que também viveu uma crise de identidade na adolescência, quando passou a ter vergonha de sua origem. Como foi que resgatou o orgulho e passou a valorizar a sua cultura?

Nas idas e vindas da aldeia para a cidade – eu estudava em Belém do Pará – fui entendendo que havia um abismo cultural entre as duas realidades. Eu vi que até podia abandonar a aldeia, mas não podia abandonar a minha raiz. Quem mudou a visão negativa que eu fazia de mim mesmo foi meu avô Apolinário. É claro que não foi da noite para o dia, mas o avô foi mostrando, às vezes com sábias palavras, às vezes apenas com o silêncio, que aquela era a minha família e que longe dela eu seria infeliz. Com meu avô aprendi o valor da ancestralidade.
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De que forma o Estado e os professores poderiam trabalhar para combater o preconceito?

O governo Lula tem feito a sua parte. Por exemplo: a lei que obriga as escolas a incluírem a história afro-brasileira e indígena na grade curricular. Os efeitos dessa lei não podem ser sentidos ainda, mas a médio prazo teremos uma geração menos preconceituosa, com mais consciência crítica. Agora, é preciso entender que escola não é tudo na vida. Ela ajuda a gente a compreender melhor o mundo, mas de nada serve se continuar formando apenas para o mercado de trabalho. Se queremos transformar a realidade, temos que passar por outro tipo de experiência que a escola não ensina.
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Que outra experiência seria esta?

Aprendi com meu povo que educar é fazer sonhar. Na sociedade moderna ocidental, os sonhos ficam presos dentro das crianças. Porque, para a sociedade, aprender é ficar trancado numa sala ouvindo alguém falar um monte de coisas que não interessam. A escola da cidade não ensina ninguém a ser bom. Ela ensina a criança a competir, ou seja, não educa para a vida, mas para o mercado. É a educação familiar que vai fazer um homem ser bom.
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Uma boa educação passa pela consciência ambiental?

Não acredito nisso. Porque a própria ideia de “sustentabilidade” está baseada na culpa. Ter uma “consciência ambiental” significa que vocês consideram o meio ambiente como algo a ser explorado. Não há meios mais ou menos nocivos de explorar a natureza. Vocês teriam que mudar radicalmente a visão que têm de progresso, desenvolvimento, consumo e propriedade. O ser humano precisa se sentir integrado ao planeta Terra.
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É cada vez maior a presença de novas tecnologias nas aldeias. Como os jovens indígenas estão lidando com a internet e a televisão? Estes meios representam uma ameaça à ancestralidade?

Em termos, porque a internet e a televisão estão contaminadas pelo preconceito, pelos padrões estéticos e pelos valores da cidade. Mas não podemos apenas condenar a tecnologia, pois ela também ajuda a melhorar a vida nas aldeias. Hoje os indígenas não precisam mais sair de casa para ter acesso à informação, como eu tive que fazer no passado. Eles usam a internet, estão conectados com o mundo lá fora, mas continuam mantendo a sua cultura porque estão inseridos no cotidiano da aldeia. Conheço indígenas universitários que moram na cidade e mantém uma cabeça totalmente ancestral. A maioria manifesta o desejo de voltar para a aldeia depois de se formar.
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As pessoas ainda se surpreendem ao descobrir que um índio pode frequentar a universidade e ter carro, internet e celular?

Sim, muitas pessoas ainda pensam no índio como um ser selvagem, que anda nu no meio do mato e, às vezes, come carne humana para não perder o costume (risos). No livro, conto uma situação que vivi no metrô de São Paulo. Peguei a conversa de duas senhoras, atrás de mim, que tentavam descobrir se eu era índio ou não. Uma delas apostou com a outra que eu não era índio porque estava usando calça jeans e relógio (risos).
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Você é um dos mais destacados autores indígenas da atualidade. Qual é o espaço que a sua literatura ocupa hoje no Brasil?

Estou satisfeito com a visibilidade que o mercado está dando para a literatura indígena em geral. Mas é importante dizer que estamos conquistando espaço não porque somos “exóticos”, mas porque escrevemos bem. A literatura indígena tem qualidade e vem sendo reconhecida pela sociedade. Atualmente, no Brasil, temos cerca de 30 autores indígenas de significância.
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É uma obrigação ou uma necessidade o engajamento político e social dos autores indígenas?

É bom lembrar que muitos antropólogos, antes de nós, escreveram livros voltados para a defesa da causa indígena. Valorizamos os seus esforços, mas, quando falamos de literatura indígena, estamos falando de indígenas que escrevem o que vivem na pele. Ela nasce quando os índios começam a assumir seu papel na sociedade. É natural que seja engajada, pois durante muito tempo nossa voz não foi ouvida. Mas isso não é uma regra. Tanto que a maioria dos nossos livros é voltada para o público infanto-juvenil.
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O que a literatura indígena tem a nos ensinar?

A gente tem uma preocupação em educar a sociedade, em fazer com que ela perca seus preconceitos e passe a olhar o índio como um igual, como parte do povo brasileiro. Por isso, a nossa literatura não pode ser superficial, ela tem que inserir o leitor no cerne da cultura indígena. Nós colocamos a nossa riqueza a serviço da Nação. Se hoje o Brasil tem a Amazônia em pé, com toda a sua exuberância, não é por causa dos empresários, das ONGs ou do governo. A Amazônia continua viva porque ali tem índio. Os povos indígenas tem outra relação com a terra e podem oferecer uma saída para o mundo.

De Bruno Ribeiro

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