segunda-feira, 17 de agosto de 2009

À prova de crise

A crise financeira é igual à nova gripe. A gente lê o noticiário, fica com medo, mas não é todo mundo que sente os efeitos na pele.” Assim o corretor de imóveis Walter Roberto Scrivano, 60 anos, define o impacto, sobre o dia a dia de sua família, do tsunami que varreu os mercados internacionais desde o último trimestre de 2008. Assim como não deixou de sair de casa por receio de adoecer, ele tampouco mudou o padrão de consumo habitual. Pelo contrário. “Minhas duas filhas compraram carro novo neste ano”, conta.
Casado com uma diretora de escola e pai de uma universitária de 24 anos e uma jornalista de 25, Scrivano diz ter observado com cautela os efeitos da mudança de conjuntura sobre a renda familiar. “Logo de início, entre setembro e outubro, o mercado parou. Foi um susto, porque vínhamos de um período bem aquecido. Mas logo depois o movimento voltou e agora está melhor do que em 2008”, descreve o corretor. Ele conta que, após bater seu recorde pessoal em dezembro de 2007 – “vendi dezenove apartamentos de um mesmo empreendimento”, ressalta – voltou à média de duas unidades ao mês no ano passado. Agora, mantém um ritmo de cinco negócios fechados a cada 30 dias.
Segundo Scrivano, o momento só não é melhor porque a grande procura é por imóveis de menor valor, na faixa de 100 mil reais, que rendem comissões menores. “Até 450 mil reais, a procura é normal. Acima desse valor, a demanda é baixa”, analisa. “O mercado só volta a melhorar nas unidades acima de 1,5 milhão de reais. Quem é rico, mesmo, não sofre com crise.”
Fosse Scrivano um economista, e não corretor de imóveis, talvez não percebesse com tanta acuidade os movimentos que as pesquisas começam a captar. Em que pesem os efeitos nada desprezíveis sobre a atividade econômica, como as demissões e a queda de produção no setor industrial, o consumidor brasileiro de algumas camadas sociais poderia até concordar com a tão criticada comparação, proposta pelo presidente Lula, da crise internacional a uma “marolinha”.
Celso Grisi, professor de Economia da USP e diretor do Instituto de Pesquisas Fractal, especializado em estudos e cenários para instituições financeiras, analisou o comportamento do consumidor ao longo do segundo trimestre de 2009. Concluiu que, salvo novas mudanças de rumo sensíveis na economia, não há impedimento para que a demanda interna retome o ritmo de crescimento do período pré-crise. “O consumidor rapidamente refez suas despesas familiares e defendeu a renda, de modo a honrar seus compromissos financeiros. Adiam alguns, suspendem outros e, por fim, ignoram os mais difíceis, que ficam para uma renegociação futura”, afirma.
Dados da última pesquisa da Fractal, fornecidos com exclusividade a CartaCapital, mostram que os supermercados estão em primeiro lugar na lista de despesas das quais o consumidor não foge (clique na imagem para ver a tabela). Em relação à pesquisa realizada no fim do ano passado, o item ultrapassou até mesmo as contas de água e luz em relevância. O dado, obtido a partir de entrevistas com 1.197 consumidores em São Paulo, confirma o que as cadeias de varejo têm apontado a cada mês, na forma de sucessivas elevações de vendas.
O cartão de crédito ganhou status entre as fontes de financiamento das famílias. Não só subiu da sexta para a quarta posição no ranking de prioridades de pagamento, como também está em último lugar na lista das despesas a serem reduzidas. “O cartão é visto como uma forma de adiar pagamentos, daí a importância crescente a ele atribuída. O consumidor pode tentar economizar energia e água, mas não abre mão de financiar suas contas”, explica Grisi.
Os números da Fractal mostram como o consumidor se preparou para encarar o momento de crise: 69% dos entrevistados diz ter passado a elaborar um orçamento mensal para controlar as despesas. “O comportamento defensivo passa pela redução das despesas de telefonia e do consumo domiciliar e pessoal”, diz o professor.
O instituto também perguntou qual seria a composição ideal para o patrimônio familiar. A maioria (81%) gostaria de adquirir ativos de uso, como veículos e moradia, índice bem próximo ao real (81,5%). Em segundo lugar, com 39% das intenções, estão as aplicações financeiras, algo que apenas 7,4% dos respondentes diz possuir. Em terceiro lugar, com 30% de indicações, vêm os ativos de rendimento, como imóveis para alugar, hoje um privilégio de apenas 0,9% dos participantes do estudo.
“O patrimônio futuro idealizado pressupõe uma ampliação do nível de liquidez e a ampliação ou preservação da renda por meio de aluguéis”, analisa Grisi. Em outras palavras, o consumidor optaria pelas aplicações financeiras para ter o dinheiro à mão, caso precise, mas também deseja manter ativos que garantam um rendimento em momentos de dificuldades.
O fato de priorizar a segurança ao pensar o futuro não diminuiu o apetite do consumidor por empréstimos. O indicador de demanda por crédito da Serasa Experian, elaborado a partir das consultas de 11,5 milhões de Cadastros de Pessoas Físicas (CPFs) realizadas pelas instituições financeiras, retornou, entre junho e julho, aos níveis dos meses imediatamente anteriores ao agravamento da crise (clique na imagem para ver o gráfico).
O índice mostra que o consumidor voltou a ter confiança, ou seja, não espera perder o emprego nos próximos meses. Anúncios recentes de contratações em indústrias que fizeram os cortes mais profundos durante o auge da crise, como as montadoras e as siderúrgicas, reforçam a segurança de quem permanece empregado. “O desaquecimento na demanda por crédito era anterior à crise, vinha desde a elevação do juro em julho de 2008”, ressalva o gerente de indicadores da Serasa Experian, Luiz Rabi. “O juro segue uma trajetória de queda consistente e a oferta de crédito praticamente normalizada pelas instituições financeiras têm seu peso sobre a recuperação.”
Analisados por faixa de renda, os dados de demanda por crédito revelam que a retomada foi mais consistente para quem recebe de 500 a 5 mil reais por mês. “Abaixo desses valores, está o consumidor que não tem nenhuma reserva financeira, e por isso se sente desprotegido para contrair dívidas”, explica Rabi. A camada superior do público ainda se ressentiria dos baques sofridos por grandes empresas exportadoras e multinacionais, cuja situação é percebida mais claramente por funcionários mais bem remunerados.
Embora tenha escapado aos efeitos da crise dentro de casa, a profissional da área de recursos humanos Roberta Freitas, 37 anos, percebeu como a crise atingiu a classe média alta. Ela recruta mão de obra doméstica para este público. “Houve o caso de um executivo que desistiu de contratar motorista, porque a empresa para a qual trabalha, americana, não ia mais pagar o salário do funcionário particular”, conta. “Outra cliente trocou duas empregadas domésticas, com salário na faixa de dois mil reais, para manter apenas uma que recebe pouco mais de mil reais.”
Casada com um advogado e mãe de dois filhos, de 14 e 7 anos, Roberta conta ter ficado preocupada com as notícias da crise, mas não a ponto de cancelar a viagem com a família para os Estados Unidos, no fim de 2008. Para este ano, planeja um passeio ainda mais longo. “O dólar mais baixo nos animou. Estamos cotando as passagens”, diz. “Sei que lá fora a crise é feia, mas aqui já está até deixando de ser assunto do dia a dia.”
Como mostram as pesquisas, a percepção da crise muda nos diferentes estratos sociais. A professora da rede pública estadual Silvana Visconti dos Reis, 46 anos, mora com a filha, estudante, a irmã, também professora, uma sobrinha, uma tia e a mãe, ambas aposentadas. A renda de todas, somada, chega a 2,2 mil reais. “No ano passado, fiz um empréstimo consignado, que comprometeu 20% da minha renda até 2014. O aumento das aposentadorias ajudou, mas você já viu o preço do leite?”, se queixa ela. O crédito, tomado com o objetivo de quitar dívidas em atraso, agora periga torná-la novamente uma devedora em atraso.
O avanço do crédito nos últimos anos contribuiu para o avanço da inadimplência no período pós-crise. Os números mais recentes da Serasa Experian, referentes a julho, mostram que o indicador continua a subir, embora com fôlego menor. A alta foi de 6,9%, na comparação com o mesmo mês de 2008. A elevação média, nas medições anteriores, superava 10%.
“É certo que o Brasil está novamente em crescimento, mas, para que a economia continue a melhorar, ainda é preciso que o rendimento real médio se recupere”, afirma Rabi. Para o gerente da Serasa Experian, o País está preparado até mesmo para enfrentar eventuais choques externos que venham a ocorrer, mas a instabilidade internacional deverá impedir um retorno a níveis de crescimento semelhantes aos dos últimos anos, acima de 5%.
O economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo, Marcel Solimeo, espera que o varejo consiga, no mínimo, empatar os resultados de 2008 até o fim deste ano. Segundo os dados da Pesquisa Mensal do Comércio, divulgados na quinta-feira 13 pelo IBGE, o volume de vendas do varejo aumentou 4,4% no primeiro semestre de 2009. Ainda que seja o crescimento mais baixo desde 2004, o índice deixa claro que não há paralisia no setor. “A retomada é consistente e vai nos permitir entrar em 2010 com um bom ritmo de atividade”, prevê.
Segundo o economista, o varejo de bens de consumo de baixo valor atravessou o período mais forte de turbulência financeira praticamente incólume. A situação foi bem diversa para os produtos dependentes de financiamento. “No Brasil, o que tivemos foi uma crise de crédito. Tanto que o comércio de veículos e de bens duráveis, quando ocorreu a paralisia dos bancos médios e financeiras, no fim de 2008, desmoronou”, recorda.
Para Solimeo, a queda do juro básico é um estímulo forte ao investimento, fundamental para garantir a consistência da aceleração econômica. Mas a taxa de câmbio virou motivo de preocupação. Visto de um lado, o dólar desvalorizado impede que a inflação dê as caras, porque dá ao consumidor a chance de comprar similares importados de produtos com preço elevado. Mas a moeda forte também desestimula o acesso das empresas brasileiras ao mercado internacional. E esse não é o único problema. “A válvula da importação pode sufocar a indústria”, acrescenta. O economista diz ser contra mecanismos de restrição às compras externas. “Barreiras à entrada de produtos só favorecem a falta de competência e os lobbies mais poderosos. As melhores alternativas são continuar a baixar os juros e melhorar a eficiência interna, de modo a baixar os custos dentro do País.”
Segundo o professor Celso Grisi, o susto inicial e a aparente superação dos efeitos da crise financeira internacional tornaram tanto as empresas como os consumidores mais conscientes quanto ao uso do crédito e esperançosos em relação ao futuro da economia nacional. O Sensor da Fiesp, indicador do ânimo da indústria paulista, atingiu na última medição o maior nível desde abril de 2008. “Verdade seja dita, anticíclico mesmo é o empresariado nacional, que pôs em prática todo o conhecimento acumulado nas turbulências dos últimos vinte anos”, afirma o economista.
Em sondagem recente, o Instituto Fractal observou que 84% dos consumidores concordam que “daqui a cinco anos, a renda familiar será provavelmente mais alta do que é agora”. Outros 83% apostaram que terão mais dinheiro para gastar no próximo ano. “Esse quadro caracteriza uma demanda reprimida que, no final da crise, deverá se manifestar no mundo do crédito às pessoas físicas, nos bancos, financeiras e estabelecimentos de varejo”, diz Grisi.
Só o otimismo, porém, não trará de volta o desenvolvimento. “O consumo será retomado com o aumento da poupança e do investimento, variáveis capazes de criar postos de trabalho”, diz o professor. A trajetória pode ser lenta, acrescenta Grisi, pois a paralisia da indústria no auge da crise levou à queda da utilização da capacidade instalada. Antes de gastar em novos projetos, as empresas terão de retornar aos níveis de produção pré-crise, o que ainda deverá demandar alguns meses. “O importante é que o quadro para o crescimento sustentável está quase pronto”, conclui o professor.

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