Até onde vai o discernimento moral que nos impede de cometer atos denominados como “bárbaros”? Comecei a me questionar sobre isso ao assistir alguns vídeos feitos por estudantes da Uniban, uma das maiores instituições privadas de ensino superior do país. Nas imagens, o quase linchamento sofrido por uma aluna que trajava roupas consideradas “indecentes”. “Puta” é o grito mais ouvido nessas gravações, feitas de forma precária em aparelhos celulares.
O caso ganhou notoriedade na mídia e já foi amplamente comentado, portanto não vou me estender. Para resumir, a jovem, assustada com a fúria dos colegas, se escondeu em uma sala de aula e só conseguiu sair escoltada pela polícia. Aparentemente consternada, a universidade divulgou a seguinte nota: “A posição da UNIBAN é de total repúdio a qualquer manifestação de preconceito de gênero e qualquer forma de difamação ou violência. Cumpre esclarecer que algumas matérias veiculadas estão equivocadas quando se refere ao crime de tentativa de estupro, uma vez que não houve qualquer contato físico nem perseguição à aluna. O que houve foram manifestações verbais de caráter ofensivo”.
Pois bem. Em um episódio que considero muito mais grave e que veio à tona também essa semana, uma garota de 15 anos foi de fato violentada em Richmond, Estados Unidos, por cerca de 20 pessoas durante uma festinha em sua escola. A agressão durou mais de duas horas e durante todo esse tempo nenhum dos envolvidos se comoveu com os gritos de socorro da menina, que além de ser estuprada apanhou bastante.
O policial responsável pelas investigações Mark Gagan classificou o ato como “bárbaro” em entrevista à BBC: "Eu ainda não consigo entender que várias pessoas viram, abandonaram o local ou participaram da agressão. É um dos casos mais perturbadores em meus 15 anos como policial." A reação se assemelha a comentários que circularam pela internet sobre o acontecimento na Uniban, descrito por muitos como algo dos “talibãs”, em referência ao grupo que comanda a resistência contra as tropas estadunidenses e européias no Afeganistão.
Se remontarmos à história, "barbárie" foi o termo utilizado pelos romanos para denominar os povos não “civilizados” que a cada ano forçavam mais as fronteiras do Império, ameaçando a pax, o saber e, claro, a manutenção do poder. Um pouco antes, os gregos já apontavam os troianos como os “estrangeiros” , numa conotação para lá de negativa, e associavam os persas ao “obscurantismo” . Agora, reproduzindo a história, os afegãos – e paquistaneses e iranianos e árabes – são a própria falta da “luz”. Poucos sabem, porém, que seus combates hoje são direcionados por textos do estrategista prussiano Carl von Clausewitz e que sua propaganda traz vídeos de cantores locais de rap – cá entre nós, nada poderia ser mais Ocidental e estadunidense do que rap.
Sem mais delongas, o ponto é que estamos discutindo aqui a natureza humana, e justificar que ela não é “típica” deste lado do mundo não poderia estar mais fora da realidade. Vivemos em tempos cruéis, em que apesar de o Brasil não estar envolvido em nenhuma guerra pro forma, a violência salta aos nossos olhos diariamente, seja pela mídia ou por nosso cotidiano. Ouvimos e vemos acontecimentos terríveis, que dilaceram corpos e conceitos. Como esquecer o “microondas” nas favelas cariocas, em que uma pessoa é assassinada presa a vários pneus queimando?
Não se trata, portanto, de algo inédito. Muito menos quando há uma multidão urrando. Basta lembrar das brigas de torcidas organizadas que ocorrem todos os finais de semana no Campeonato Brasileiro de futebol. E tampouco é assombroso que envolva preconceito de gênero, pois a sociedade continua machista, homofóbica e repleta de preconceitos. Sim, pelo menos ainda ficamos chocados com casos como o da Uniban. Mas há quem diga que a garota mereceu, provocou, “pediu”.
Tudo isso me leva à conclusão de que estejamos nos pautando por valores deturpados desde sempre: que a mulher deve se vestir de forma determinada, se comportar de maneira específica e, em especial, que ainda é possível violentá-la, seja oral, física ou psicologicamente. Somados à permissividade adquirida pela sensação de estar protegido pelo coletivo, que eu nem ouso tentar discutir, aí está uma combinação explosiva.
Repito, nada é novidade: não podemos nos esquecer de uma só mulher queimada pelas fogueiras da Inquisição na Idade Média.
domingo, 1 de novembro de 2009
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